610 – Linguagem jurídica no divã

 

ANDRÉ GONÇALVES FERNANDES - Juiz de Direito

 

 

Recentemente, no final do expediente, entrou uma senhora no gabinete dizendo que queria ver o “acordeão” do processo. Disse para ela esperar e solicitei o processo do cartório. Como já desconfiava, a senhora não queria um acordeão, mas informações sobre o “acórdão”, o nome dado à decisão colegiada dos tribunais (aqui, no baixo clero da hierarquia judicial, chama-se sentença), que foi juntado naquele processo.

 

Alguns dias depois, recebi uma ordem judicial de outra comarca, cuja finalidade consistia em determinar o cumprimento de um mandado de prisão, com a seguinte pérola ao final do despacho: “Preso, encaminhe-se o devedor ao ergástulo público”. Ergástulo é o outro nome de “cadeia”. Deu vontade de soltar o sujeito, para o bem do mundo do direito...

 

Nós, os profissionais do direito, sofremos de uma incapacidade, que vem desde a faculdade, de nos comunicarmos com o resto do mundo de maneira clara. Vivemos da palavra lida, interpretada e falada, mas somos incapazes de nos fazermos lidos, interpretados e falados. Dizemos tudo para nós e nada para os outros, justamente aqueles que são afetados diretamente por nossas decisões e conselhos.

 

Mesmo no âmbito jurídico não é diferente: uma vez, participei de um debate em que não consegui entender as ideias das duas pessoas que dividiam a mesa comigo. Alguém mais inteligente da plateia perguntou-me se, entre gregos e troianos, minha posição teórica seria intermediária. Respondi que não sabia, porque não havia entendido nem o grego e nem o troiano. E, imediatamente, corrigi-me: como estava “boiando”, minha posição só podia ser a intermediária mesmo, porque, afinal, o mar Egeu separava ambos os territórios. E, no lugar da tábua de salvação, agarrava-me a um dicionário...

 

Várias são as causas dessa linguagem apenas acessível aos “iniciados”: divisão do Direito em áreas cada vez mais especializadas, pedantismo bolorento, instrumento de controle social, tecnicismo exagerado, latinismo retrógrado, vaidade vocabular, manipulação retórica, violência simbólica erudita e autoritária e, como bem lembrou uma amiga de longa data, o “adjetivismo”, a mania de acrescentar dois, três ou quatro qualificativos aos substantivos, os quais, depois de tanta adjetivação, acabam perdidos no contexto da frase.

 

Se o leitor acha que já sabe tudo sobre o recurso dos embargos, em razão do julgamento do mensalão, engana-se. Revendo minhas velhas anotações de aula sobre o assunto, ali consta que “os embargos têm natureza multifária (‘multi’ o quê?) e são de espécie anfíbia (será que dormia na cadeira?), podendo ser classificados em embargos declaratórios, embargos de divergência, embargos infringentes e embargos infringentes do julgado (conhecidos também por embargos menores ou embarguinhos)”. De lá para cá, não houve qualquer perigo de melhora no hábito de adjetivar...

 

Não estou aqui a defender uma linguagem totalmente coloquial na comunicação jurídica. Muitos termos técnicos são necessários e muitas expressões latinas representam um saber perene acumulado, um princípio já consolidado pelo Direito ou, até hoje, não têm uma tradução fiel para nossa língua. O habeas corpus, que não é de origem romana, mas inglesa, é um bom exemplo disso. Etimologicamente, quer dizer, “que tenhas teu corpo”; para um réu que conheci, tinha um interessante significado: depois de soltá-lo no final de uma audiência, por ordem do tribunal, ele me agradeceu por ter recebido o “abre as porta”. Nada como a sabedoria popular...

 

A preocupação com esse linguajar hermético já “sensibilizou” até mesmo o legislador. Houve projeto de lei no Congresso Federal, obrigando os juízes ao emprego de uma linguagem simples, clara e direta, arquivado posteriormente. Ainda bem, porque a solução do problema não passa por uma resposta legal, mas por uma mudança cultural.

 

Poupando o leitor do latinório básico, já se foi o tempo para um “vetusto vernáculo manejável no âmago dos sodalícios judiciais que, a partir da peça inaugural, fulminava as súplicas petitórias, insculpindo um vácuo de reverberação no âmbito de cognoscibilidade dos utentes forenses, sem que se sobejasse no beneplácito destes”.

 

É hora de aposentar os substantivos de fraque e cartola e os adjetivos de luvas e polainas, em prol de uma linguagem acessível ao entendimento alheio. Em “juridiquês”, malgrado minha reverência ao libelo de outrem, cuida-se do que especulo. Ou, em português, com respeito à divergência, é o que penso.

 

André Gonçalves Fernandes é juiz de Direito, pesquisador, professor do IICS-CEU Escola de Direito e coordenador do IFE-Campinas (agfernandes@tjsp.jus.br).


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