627 - Breves anotações sobre a Lei 13.043/2014: alienação fiduciária de bem móvel

 
SILAS SILVA SANTOS [1] - Juiz de Direito 



1. Introdução

        

O Decreto-lei nº 911, de 1º de outubro de 1969, editado pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, tudo com amparo nos Atos Institucionais nº 12 e nº 5, no auge daquilo que historicamente chamamos de Ditadura Militar, continua em vigor. Esse fato não deixa de ser curioso, pois é da tradição do nosso direito o reconhecimento da ilegitimidade de normas com gênese antidemocrática [2].

        

É bem verdade que aludido Decreto-lei vem sofrendo alterações pontuais, todas elas voltadas a beneficiar a posição jurídica do credor fiduciário. Assim se deu, por exemplo, com a Lei nº 10.931/2004, responsável pela atual redação do art. 3º, § 2º, do Decreto-lei, que tanta celeuma gerou até que o STJ pacificasse o entendimento segundo o qual o devedor fiduciante terá o bem restituído, livre do ônus, desde que, no prazo de cinco dias contados da efetivação da liminar de busca e apreensão, pague a integralidade da dívida pendente, segundo os valores apresentados pelo credor fiduciário na petição inicial [3].

        

Agora vem a lume a Lei nº 13.043, de 13 de novembro de 2014, que trata de inúmeros temas em seus 114 artigos. Dentre esses diversos temas interessa-nos aquele relacionado com a chamada ação de busca e apreensão de bem móvel alienado fiduciariamente, uma vez que a citada Lei promoveu interessantes modificações na seara do processo judicial destinado a tutelar a posição jurídica do credor fiduciário.

        

O objetivo que nos move, nesses breves comentários, não é o de esmiuçar o novo tratamento legislativo ou de analisar criticamente as novas regras. Contenta-se com uma simples visão panorâmica das modificações, destinada a, quando muito, auxiliar os colegas e servidores do TJSP a lidar com as inovações, certos de que o estudo prévio contribui, no mínimo, para que se evitem surpresas no trato de uma nova matéria. Algumas reflexões e dúvidas também são levantadas, mas ainda não nos sentimos capazes de sugerir respostas para todas.

 

2. Norma processual: vigência e aplicabilidade

        

A Lei 13.043/2014 trata da proteção processual ao credor fiduciário no seu artigo 101, cuja redação impõe alterações em vários dispositivos do Decreto-lei 911/69. Tendo em vista que a epígrafe do citado Decreto-lei refere que suas disposições constituem “normas de processo”, evidencia-se, sem muita dificuldade, que as modificações impostas pela Lei ora comentada também ostentam essa mesma natureza.

        

O art. 101, da Lei 13.043/2014, já está em vigor, muito embora outros dispositivos da mesma lei estejam submetidos a prazos de vacatio legis (art. 113). Não é o caso, porém, do dispositivo de que tratamos.

        

Estabelecida a vigência imediata dessa legislação, advém como corolário a aplicabilidade também imediata aos processos pendentes. Com efeito, é bem conhecida a regra segundo a qual a legislação processual aplica-se desde logo aos processos pendentes, respeitando-se, entretanto, a higidez dos atos processuais praticados sob a égide da legislação antiga. Trata-se do sistema do isolamento dos atos processuais [4], aplicável para solução das questões de direito intertemporal em matéria processual.

        

Logo, exigem-se do aplicador redobrados cuidados no manejo dos processos que versam sobre alienação fiduciária, haja vista a vigência e aplicabilidade imediata de novidades a seguir enfrentadas.

 

3. Venda do bem pelo credor fiduciário: art. 2º, caput, do DL 911/69

        

A redação dada ao art. 2º, caput, do DL 911/69, não discrepa significativamente do discurso linguístico que se continha originariamente. Destaca-se, tão somente, que agora o credor fiduciário deve prestar contas ao devedor fiduciante quanto ao preço da venda do bem, ao pagamento de seu crédito e das despesas decorrentes.

        

De fato, a redação em vigor é a seguinte:

 

“No caso de inadimplemento ou mora nas obrigações contratuais garantidas mediante alienação fiduciária, o proprietário fiduciário ou credor poderá vender a coisa a terceiro, independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato, devendo aplicar o preço da venda no pagamento de seu crédito e das despesas decorrentes e entregar ao devedor o saldo apurado, se houver, com a devida prestação de contas”.

 

A modificação operada está apenas na parte final do dispositivo, no ponto em que impõe a prestação de contas, que pode ser extrajudicial ou judicial. Aliás, a jurisprudência já vinha entendendo cabível a exigência de prestação de contas em face do credor fiduciário, na hipótese de venda extrajudicial do bem alienado fiduciariamente [5]. Então, a legislação vem apenas para consolidar aquilo que já praticávamos, não se tratando de uma verdadeira inovação.  

 

4. Comprovação da mora: art. 2º, § 2º, do DL 911/69

        

Em sua redação originária o DL 911/69 exigia, como requisito indispensável para a propositura da ação de busca e apreensão, a notificação extrajudicial do devedor, mediante o envio de carta registrada pelo Cartório de Títulos e Documentos ou mediante protesto do título, a critério do credor.

        

Por causa dessa regra surgiu a celeuma sobre se a notificação haveria de ser encaminhada pelo Cartório situado no foro de residência do devedor, isto é, o foro competente para a própria ação de busca e apreensão. O STJ já teve oportunidade de cristalizar o entendimento consoante o qual não se exige que o Cartório de Títulos e Documentos seja aquele localizado no foro do domicílio do devedor ou no foro onde se processará a busca e apreensão [6].

        

Com a vigência da Lei 13.043/2014 essa discussão não mais se põe. É que o legislador não exige, doravante, a notificação promovida pelo Cartório de Títulos e Documentos, já que basta o envio de carta registrada com aviso de recebimento, não se exigindo, ainda, que a assinatura constante do AR seja a do próprio destinatário [7]. Eis a nova redação do art. 2º, § 2º, do DL 911/69:

 

“A mora decorrerá do simples vencimento do prazo para pagamento e poderá ser comprovada por carta registrada com aviso de recebimento, não se exigindo que a assinatura constante do referido aviso seja a do próprio destinatário”.

        

Embora a notificação prévia constitua requisito indispensável para comprovação da mora, as formalidades anteriormente previstas deixaram de incidir, pois o envio de simples carta registrada com aviso de recebimento constitui meio idôneo de demonstração da mora, desde que a correspondência seja recebida no endereço indicado.

        

Ao permitir que o aviso de recebimento seja assinado por terceiro, que não o próprio destinatário, o legislador faz crer que a correspondência deva ser recebida no endereço do devedor. Isto é, não importa quem seja o recebedor, contanto que haja alguém que tenha recebido a carta e assinado o AR.

        

Nesses termos, a lei não resolve a discussão que se trava quando a correspondência é devolvida porque o destinatário mudou-se ou porque simplesmente não fora encontrado (casa fechada; endereço inexistente etc.). Não é incomum a hipótese em que o devedor, após informar seu endereço no contrato de financiamento, mude-se de residência sem informar tal circunstância ao credor, gerando a devolução da correspondência por esse motivo. Para a hipótese de mudança de endereço sem prévio aviso ao credor, a jurisprudência do TJSP reputa válida a notificação, mesmo que a correspondência seja devolvida [8].

        

Ao tempo da redação originária do DL 911/69 a estratégia das instituições financeiras era a notificação por edital, promovida pelo Cartório de Títulos e Documentos, ou até mesmo o protesto do título, tal como permitia o antigo § 2º do art. 2º.

        

Tendo em vista que essas formalidades foram superadas pela nova legislação, resta a indagação sobre se, na hipótese de não recebimento da carta registrada, o credor poderia valer-se dos mecanismos disponíveis perante os Cartórios de Títulos e Documentos para comprovação da mora. Pergunta-se: (a) sendo infrutífera a remessa de simples carta registrada, seria possível a notificação por edital, levada a efeito pelo Cartório de Títulos e Documentos? (b) na mesma hipótese, o protesto do título serviria para comprovar a mora?

        

Parece razoável entender que o objetivo da nova lei foi o de facilitar a comprovação da mora, mediante a adoção de um expediente menos formal (carta registrada com AR), de sorte que a adoção de mecanismos mais solenes (notificação ficta pelo Cartório Extrajudicial ou protesto) não poderia ser considerada inidônea para comprovação da mora do devedor. A hipótese aqui alvitrada não nos parece meramente cerebrina, pois, além da mudança do devedor para local ignorado, existe a possibilidade de a mudança ter ocorrido para local conhecido, mas não atendido pelo serviço dos Correios (certos locais em zona rural).

        

Outra discussão que nos parece factível pode ser extraída do seguinte raciocínio: a lei admite que o AR seja assinado por terceiro; mas, para tanto, a correspondência deve ser enviada para o endereço indicado pelo devedor no contrato? Ou seria possível adotar-se a mesma solução (assinatura do AR por terceiro) quando o credor obtém por outros meios um novo endereço do devedor, isto é, diverso daquele informado no contrato?

        

A primeira impressão é a de que o legislador consente com menos formalidades na pressuposição de que o endereço de destino da correspondência seja aquele informado pelo próprio devedor quando da contratação. Assim, o envio da carta para aquele endereço presume-se capaz de fazer com que o comunicado chegue ao conhecimento do devedor, comprovando-se a mora mesmo que um terceiro assine o AR, contanto que o devedor não tenha informado, no decorrer da relação contratual, um novo endereço para correspondência.

        

Logo, a presunção de aperfeiçoamento da notificação, à semelhança do que sucede no âmbito processual (art. 238, p. único, do CPC) [9], só teria lugar na hipótese de a carta ter sido enviada para o endereço informado pelo próprio devedor. Nas hipóteses em que o credor “descobre” um novo endereço – não informado pelo próprio devedor – parece lícito entender que o AR deva ser assinado pelo próprio devedor, destinatário da correspondência. Além disso, a devolução da carta por razões de mudança de endereço não atrairia a conclusão no sentido da legitimidade da notificação.

 

5. Liminar de busca e apreensão: plantão judiciário (art. 3º, caput, do DL 911/69)

        

Não configura novidade alguma a afirmação de que, mesmo sem o requisito da urgência, admite-se a concessão de liminar na ação de busca e apreensão de bem objeto de alienação fiduciária. Desde a redação originária do DL 911/69 o sistema assim previa.

        

Nesse ponto a Lei 13.043/2014 não inova, pois continua permitindo a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente. Note-se que o verbo ser está no modo imperativo (a busca e apreensão será concedida liminarmente).

        

A alteração digna de nota consiste na viabilidade de o requerimento de liminar ser apreciado em plantão judiciário. Confira-se a nova redação do art. 3º, caput:

 

“O proprietário fiduciário ou credor poderá, desde que comprovada a mora, na forma estabelecida pelo § 2º do art. 2º, ou o inadimplemento, requerer contra o devedor ou terceiro a busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, a qual será concedida liminarmente, podendo ser apreciada em plantão judiciário”.

 

Com essa disposição amplia-se a competência dos órgãos jurisdicionais que funcionarem em regime de plantão judiciário, de sorte que a petição inicial da busca e apreensão pode ser distribuída durante o plantão e não se descarta que algum requerimento incidental de liminar de busca e apreensão seja viável em sede de plantão judiciário.

        

O curioso é que a liminar de busca e apreensão geralmente não está vinculada ao requisito da urgência, circunstância que coloca o dispositivo ora comentado na contramão dos objetivos colimados com a instituição do plantão judiciário. De fato, quando se analisa o rol do art. 1º, do Provimento 1.154/2006, do Conselho Superior da Magistratura, chega-se à conclusão de que todas as hipóteses listadas contêm um coeficiente mínimo de urgência, algo que não comparece no âmbito da busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente.

        

A reflexão que nos permitimos anunciar diz respeito à posição do réu, o qual tem interesse na revogação da liminar em certos casos, como se dá, exemplificativamente, na hipótese de pagamento integral do débito (art. 3º, § 2º, do DL 911/69) ou até mesmo quando ocorre o chamado adimplemento substancial, fenômeno que, segundo a jurisprudência, afasta a possibilidade da busca e apreensão [10]. Seja qual for o motivo, certo é que se admite que o réu traga argumentos tendentes a inviabilizar a manutenção da liminar de busca e apreensão. Daí as indagações: esse requerimento do réu seria admissível perante o plantão judiciário? Se é possível para o autor debater sobre a liminar no plantão, o princípio da isonomia não recomendaria semelhante postura em favor do réu?

        

Noutra perspectiva, a interpretação sistemática da legislação agora em vigor permite que se obtenha em sede de plantão judiciário a ordem de busca e apreensão com base no singelo requerimento a que alude o § 12 do mesmo art. 3º do DL 911/69, também introduzido pela Lei 13.043/2014. A análise desse dispositivo virá a seu tempo (cfr. n. 7, infra).

        

Por fim, constitui decorrência de tudo quanto foi exposto que a matéria atinente às liminares em ações de busca e apreensão sujeita-se também ao crivo do plantão judiciário de segunda instância. Imagine-se, exemplificativamente, que numa sexta-feira o juízo de primeiro grau profira decisão indeferindo a liminar de busca e apreensão; nessa hipótese, a parte interessada poderia interpor, já no fim de semana imediato, agravo de instrumento perante o plantão de segunda instância.

 

6. Restrição judicial: inclusão na base de dados do RENAVAM (art. 3º, §§ 9º, 10 e 11, do DL 911/69)

        

Os dispositivos agora comentados aplicam-se exclusivamente para a busca e apreensão de veículos, ou seja, para a maior parte dos casos com que lidamos no cotidiano forense.

        

Com base na dicção do § 9º do art. 3º do DL 911/69, o juiz não só decretará a liminar de busca e apreensão mas também inserirá (verbo no imperativo) uma restrição judicial na base de dados do RENAVAM, isso na hipótese de se ter acesso à aludida base de dados.

        

Ocorre que essa restrição só terá lugar enquanto não apreendido o bem. De fato, uma vez cumprida a liminar de busca e apreensão, a restrição deve ser excluída do mencionado banco de dados. Eis a redação do § 9º:

 

“Ao decretar a busca e apreensão de veículo, o juiz, caso tenha acesso à base de dados do Registro Nacional de Veículos Automotores – RENAVAM, inserirá diretamente a restrição judicial na base de dados do Renavam, bem como retirará tal restrição após a apreensão”.

 

Bem é de ver que essas providências (de inserção e de exclusão) independem de requerimento da parte interessada, cumprindo ao juiz atuar ex officio. Nesse aspecto, exige-se mais um cuidado da serventia ao lidar com esse tipo de processo, pois o cumprimento da liminar impõe que o juiz exclua a restrição da base de dados do RENAVAM. Assim, em vez de simplesmente encaminhar os autos para o escaninho ou fila de prazo, como se vinha fazendo normalmente (prazo de 15 dias para resposta, contados da execução da liminar: art. 3º, § 3º, do DL 911/69), a serventia deve instar o juiz a que exclua a restrição na base de dados do RENAVAM ou oficie à repartição de trânsito competente, com a mesma finalidade [11].

        

Mais uma vez é permitido refletir sobre a postura do juiz que eventualmente defira liminar em sede de plantão judiciário: terá também de cumprir essa regra que impõe a inclusão da restrição na base de dados do RENAVAM? Quer nos parecer que sim, pois a inserção determinada pela lei tem seu momento apropriado, isto é, ao se decretar a busca e apreensão.

        

Caso o juiz não tenha acesso ao mencionado sistema, deverá então expedir ofício ao departamento de trânsito competente para que: I – registre o gravame referente à decretação da busca e apreensão do veículo; II – retire o gravame após a apreensão do veículo (§ 10 do art. 3º).

        

A lei também propõe a criação de um banco de mandados, no âmbito do qual também será inserido o mandado de busca e apreensão (§ 11 do art. 3º). Muito provavelmente caberá ao CNJ instituir esse banco de mandados.

 

7. Liminar obtida e/ou cumprida em comarca diversa: dispensa de carta precatória (art. 3º, §§ 12 e 13, do DL 911/69)

        

Os dispositivos aqui comentados disciplinam apenas a busca e apreensão de veículos.

 

A regra geral que impõe a expedição de carta precatória para a prática de ato processual fora da sede do juízo foi mitigada pelo § 12 do art. 3º. Agora, independentemente de carta precatória, a parte interessada na busca e apreensão poderá requerer diretamente ao juízo da comarca onde foi localizado o veículo o cumprimento da liminar, sempre que o bem estiver em comarca distinta daquela da tramitação do processo.

        

O texto legal é o seguinte:

 

“A parte interessada poderá requerer diretamente ao juízo da comarca onde foi localizado o veículo com vistas à sua apreensão, sempre que o bem estiver em comarca distinta daquela da tramitação da ação, bastando que em tal requerimento conste a cópia da petição inicial da ação e, quando for o caso, a cópia do despacho que concedeu a busca e apreensão do veículo”.

 

À primeira vista o texto estaria a disciplinar o singelo cumprimento da liminar, concedida pelo juízo perante o qual tramita a ação de busca e apreensão, em comarca diversa, independentemente da expedição de carta precatória, para o que bastaria ao interessado formular um requerimento ao juízo de localização do bem, instruindo-o com cópia da petição inicial e da decisão que concedera a busca e apreensão.

        

Porém, ao tratar dos requisitos desse requerimento, a lei exige, necessariamente, a cópia da petição inicial, levando-se a entender, com facilidade, que a ação de busca e apreensão já fora ajuizada em comarca diversa daquela em que localizado o bem.

        

Ocorre que a lei não exige cumulativamente, para todos os casos, a instrução daquele requerimento com cópia da decisão [12] que concede a liminar. De conseguinte, haverá hipóteses em que, antes mesmo da concessão da liminar pelo juízo competente, a parte interessada poderá, com simples cópia da petição inicial já distribuída [13], requerer diretamente a outro juízo (em cuja comarca tiver sido localizado o bem) a concessão e o cumprimento da liminar de busca e apreensão.

        

Haverá, nessa perspectiva, uma espécie de ampliação da competência jurisdicional do órgão perante o qual não tramita a demanda, limitando-se tal competência à apreciação da liminar e ao seu respectivo cumprimento, sendo oportuno ainda questionar se caberia a esse juízo determinar as providências a que aludem os §§ 9º, 10 e 11 do art. 3º (cfr. n. 6, supra) ou se essa providência seria da alçada exclusiva do juízo da causa [14].

        

Seja como for, a regra comentada pode ser desmembrada em duas hipóteses bem distintas: (i) a liminar concedida pelo juízo da causa pode ser cumprida em comarca diversa, independentemente de carta precatória, bastando o requerimento instruído com cópia da petição inicial e da decisão que concedera a liminar; (ii) mediante simples requerimento, instruído com cópia da inicial e dos documentos pertinentes, a parte interessada pode solicitar a concessão da liminar e seu efetivo cumprimento ao juízo de localização do bem.

        

Como já anunciado anteriormente, é possível que esses requerimentos sejam formulados em sede de plantão judiciário, à luz do que preconiza o art. 3º, caput, do DL 911/69.

        

Evidentemente que as Normas de Serviço da CGJ do TJSP deverão ser ajustadas para esse tipo de situação, gerando-se novas funcionalidades no SAJ, já que surgirão os inevitáveis questionamentos sobre se esses requerimentos serão ou não distribuídos livremente perante as Varas Cíveis (quando houver mais de uma na comarca).

        

Também será necessário disciplinar a permanência ou não desses documentos no juízo do cumprimento da liminar. O ideal seria que, após as diligências ocorridas no juízo de localização do bem, todo o material produzido fosse remetido ao juízo competente, mas a lei não faz referência a tal providência, contentando-se com a simples comunicação do cumprimento do mandado de busca e apreensão (§ 13 do art. 3º). A adoção do sistema aplicável às cartas precatórias, ainda que por analogia, serve de fundamento para a prática aqui sugerida: remessa de todo o material para o juízo da causa.

 

8. Cumprimento do mandado de busca: deveres do réu (art. 3º, § 14, do DL 911/69)

        

Ainda que já fosse um dever inerente à boa-fé objetiva, o legislador enfatizou, agora expressamente, que o devedor (ou terceiro) [15], por ocasião do cumprimento do mandado, terá de entregar o bem (não se trata apenas da hipótese de veículos) e seus respectivos documentos.

        

Parece lícito entender que o não cumprimento desse dever poderá sujeitar o réu (ou o terceiro em poder de quem estiver o bem) às sanções previstas no art. 14, p. único do CPC. Se ao devedor fiduciante impõe-se aludido “dever de entrega”, seria de se questionar se ele também não estará sujeito ao “dever de informação” quanto à localização do bem.

 

9. Conversão da busca e apreensão em execução: arts. 4º e 5º, do DL 911/69

        

A partir do momento em que se vedou a prisão civil do depositário infiel (Súmula Vinculante nº 25/STF [16]), a conversão da busca e apreensão em depósito tornou-se inócua, já que todas as hipóteses de ação de depósito desaguam numa execução por quantia certa.

 

Bem por isso é que a jurisprudência já vinha admitindo a conversão da busca e apreensão em execução fundada em título extrajudicial [17], desde que o credor fiduciário seja portador, evidentemente, de título executivo [18].

        

Tal possibilidade agora decorre da própria lei, consoante a redação do art. 4º, caput, in verbis:

 

“Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, fica facultado ao credor requerer, nos mesmo autos, a conversão do pedido de busca e apreensão em ação executiva, na forma prevista no Capítulo II do Livro II da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil”.

 

Portanto, se restava alguma dúvida sobre essa possibilidade de conversão, o problema está superado.

        

Afora a hipótese expressamente prevista, consideramos admissível a conversão também nos casos em que o juiz indeferir ou revogar a liminar com base na teoria do adimplemento substancial. Suponha-se que num universo de 60 prestações o devedor já tenha efetuado o pagamento de 55, hipótese em que a jurisprudência admite, a despeito da mora, a manutenção do contrato, inviabilizando-se a busca e apreensão. Nessa contingência, nada impede que o credor opte, desde logo, pela conversão da busca e apreensão em ação executiva.

        

O novo texto legislativo reafirma a admissibilidade de o credor fiduciário valer-se diretamente da execução, isto é, sem passar pelo sistema da conversão da busca e apreensão em execução. Com efeito, a exemplo do que já ocorria na redação originária, o art. 5º, caput, do DL 911/69, assim dispõe: “Se o credor preferir recorrer à ação executiva, direta ou a convertida na forma do art. 4º, ou, se for o caso ao executivo fiscal, serão penhorados, a critério do autor da ação, bens do devedor quantos bastem para assegurar a execução”.

 

10. Recuperação judicial: irrelevância (art. 6º-A, do DL 911/69)

        

A Lei 11.101/2005, no seu art. 49, § 3º, já estabelecia que o crédito do proprietário fiduciário de bem móvel ou imóvel não se submete ao regime da recuperação judicial, sendo vedada, contudo, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial, no período de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º, da mesma Lei 11.101/2005.

        

De sua parte, a Lei 13.043/2014 incluiu o art. 6º-A do DL 911/69, com a seguinte redação: “O pedido de recuperação judicial ou extrajudicial pelo devedor nos termos da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, não impede a distribuição e a busca e apreensão do bem”.

        

Veja-se que não só a distribuição da ação é admissível mas também, e principalmente, a própria busca e apreensão do bem alienado fiduciariamente, donde exsurge a conclusão de que as demais consequências previstas no DL 911/69 (consolidação da posse e propriedade depois de escoado o prazo do art. 3º, § 1º, do DL 911/69) incidem tranquilamente.

        

A celeuma que se pode entrever concerne à admissibilidade ou não de busca e apreensão de bem de capital essencial à atividade empresarial da pessoa jurídica em recuperação, no período de suspensão a que se refere o art. 6º, § 4º, da Lei de Recuperação e Falência. Em outros termos, a ausência de ressalva na redação do art. 6º-A, do DL 911/69, teria derrogado a parte final do art. 49, § 3º, da Lei 11.101/2005, ao menos no que toca aos bens alienados fiduciariamente? Cremos que não, à semelhança do que já vinha decidindo o STJ [19]. De fato, a regra exposta pela Lei 13.043/2014 veio apenas confirmar aquilo que já se podia inferir da dicção do art. 49, § 3º, da Lei 11.101/2005, razão pela qual subsiste a parte final da regra por último citada [20].

 

11. Bloqueio judicial do bem alienado fiduciariamente: inadmissibilidade (art. 7º-A, do DL 911/69)

        

O dispositivo impede que em outras demandas – que não a de busca e apreensão – o bem objeto de alienação fiduciária seja exposto a algum bloqueio judicial para preservação do interesse de terceiros.

        

A intenção do legislador parece estar relacionada, principalmente, com a penhora (e o consequente bloqueio judicial) de bem móvel alienado fiduciariamente, pois a regra incluída pela Lei 13.043/2014 veda, peremptoriamente, o bloqueio judicial de bem alienado fiduciariamente.

        

Porém, admite-se a penhora dos direitos atinentes ao bem, tanto que o dispositivo em comento alude que “qualquer discussão sobre concursos de preferências deverá ser resolvida pelo valor da venda do bem”[21]. Eis a redação integral do art. 7º-A:

 

“Não será aceito bloqueio judicial de bens constituídos por alienação fiduciária nos termos desde Decreto-Lei, sendo que, qualquer discussão sobre concursos de preferências deverá ser resolvida pelo valor da venda do bem, nos termos do art. 2º” [22].

 

12. Extensão das regras ao arrendamento mercantil (leasing): art. 2º, § 4º, e art. 3º, § 15, do DL 911/69

        

Por último, o conteúdo do art. 2º, caput (possibilidade de alienação da coisa independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou outra medida judicial ou extrajudicial, com prestação contas ao final) e também do seu § 2º (comprovação da mora com base em simples carta registrada com aviso de recebimento) aplicam-se às hipóteses de arrendamento mercantil (leasing) de veículos.

        

Portanto, as mesmas facilidades criadas para os contratos clausulados com alienação fiduciária, especialmente no campo da comprovação da mora, são extensíveis aos contratos de arrendamento mercantil.

        

Não bastasse isso, toda a disciplina prevista no art. 3º, nos seus quatorze parágrafos, incidem também nas operações de arrendamento mercantil (§ 15 do art. 3º do DL 911/69).

        

Assim, todas as inovações acima comentadas, advindas da nova redação do art. 3º, do DL 911/69, podem comandar o processo judicial de reintegração de posse de bem alvo de arrendamento mercantil.

        

Conquanto a jurisprudência já viesse admitindo a extensão das normas processuais da alienação fiduciária ao arrendamento mercantil [23], o texto legal agora não deixa mais dúvidas. Chama-se a atenção, porém, para o fato de a nova lei ter disciplinado as hipóteses em que se admite essa extensão. Se a lei cuidou de explicitar os casos específicos, parece intuitivo que semelhante extensão não se dá fora das hipóteses legais.

        

Exemplificativamente, há precedentes do TJSP no sentido da inadmissibilidade de o réu, na ação de reintegração de posse, exercer o direito de efetuar o pagamento integral do débito e de, com isso, retomar a posse do bem livre do ônus (art. 3º, § 2º, do DL 911/69) [24]. Tal orientação vem calcada na ideia de que ao arrendamento mercantil não seriam aplicáveis as regras do DL 911/69. Lícito é entender que essa postura interpretativa tende a ser suplantada pela expressa dicção do art. 3º, § 15, do DL 911/69, em sua atual redação.



[1] Mestre e Doutorando em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP; Juiz de Direito no Estado de São Paulo; Coordenador do Núcleo Regional de Presidente Prudente da EPM.

[2] BECKER, L. A. Contratos bancários: execuções especiais. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 333-334.

[3] Inicialmente o TJSP entendeu inconstitucional o dispositivo citado (Incidente de Inconstitucionalidade nº 150.402-0/5-00, Órgão Especial, Rel. Des. Boris Kauffmann, j. 19.12.2007, v.u.). Contudo, ao julgar o Recurso Especial Repetitivo 1.418.593/MS (2ª Seção, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 14.05.2014, DJe 27.05.2014), o STJ consolidou o entendimento de que a retomada do bem pressupõe o pagamento integral do débito pendente, e não só das parcelas vencidas até a propositura da ação de busca e apreensão.

[4] AMARAL SANTOS, Moacyr. Primeiras linhas de direito processual civil. 23ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, n. 24, p. 32, 1º vol.

[5] STJ, REsp 67.295/RO, 3ª T., Rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. 26.08.1996, DJU 07.10.1996, p. 37638; STJ, REsp 828.350/RS, 3ª T., Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 03.04.2007, DJU 13.08.2007, p. 366.

[6] STJ, REsp 1.184.570/MG (repetitivo), 2ª Seção, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 09.05.2012, DJe 15.05.2012.

[7] A jurisprudência já vinha admitindo a desnecessidade da notificação pessoal, bastando o envio, pelo Cartório de Títulos e Documentos, de correspondência para o endereço do devedor (STJ, AgRg no AREsp 396.658/RS, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 10.12.2013, DJe 17.12.2013).

[8] Agravo de instrumento. Ação de busca e apreensão. Decisão que indeferiu a liminar por entender não comprovada a mora do réu. Insurgência. Notificação extrajudicial enviada ao endereço constante do contrato de alienação fiduciária, porém, não entregue por motivo de mudança. Mora comprovada. Liminar deferida. Decisão reformada. Recurso provido” (TJSP, AI 2192976-15.2014.8.26.0000, 35ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Morais Pucci, j. 24.11.2014).

[9] “Presumem-se válidas as comunicações e intimações dirigidas ao endereço residencial ou profissional declinado na inicial, contestação ou embargos, cumprindo às partes atualizar o respectivo endereço sempre que houver modificação temporária ou definitiva”.

[10] STJ, REsp 1.051.270/RS, 4ª T., Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 04.08.2011, DJe 05.09.2011; STJ, REsp 912.697/RO, 4ª T., Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 07.10.2010, DJe 25.10.2010; STJ, REsp 469.577/SC, 4ª T., Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 25.03.2003, DJU 05.05.2003, p. 310.

[11] Sugere-se que na decisão que concede a liminar já venha o comando para que, uma vez comprovada a efetivação da ordem, a serventia proceda à exclusão da restrição, mediante o acesso ao sistema respectivo ou mediante a expedição de ofício, conforme o caso. Ou seja, uma vez cumprida a liminar, o processo não precisa ser novamente levado à conclusão.

[12] A lei utiliza, equivocadamente, o termo “despacho”, quando na verdade se cuida de genuína decisão.

[13] Também será preciso juntar cópia dos documentos que instruíram a petição inicial, sob pena de o juiz da localização do bem não ter condições de aferir quanto à viabilidade da concessão da liminar.

[14] As normas internas do TJSP haverão de disciplinar essa questão, necessariamente.

[15] Inclui-se o “terceiro” porque assim faculta o art. 3º, caput, do DL 911/69.

[16] É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito.

[17] “AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. BUSCA E APREENSÃO. CONVERSÃO EM EXECUÇÃO. Se não citado o réu, plenamente viável a conversão da ação de busca e apreensão em execução. Inteligência dos arts. 264, 294 e 906, do CPC. Decisão reformada. Recurso provido (TJSP, AI 2200146-38.2014.8.26.0000, 26ª Câmara de Direito Privado, Rel. Felipe Ferreira, j. 26.11.2014).

[18] Na generalidade dos casos, as instituições financeiras valem-se de cédula de crédito bancário, reconhecida pela jurisprudência como título executivo extrajudicial (STJ, REsp 1.291.575 – repetitivo – 2ª Seção, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 14.08.2013, DJe 02.09.2013).

[19] STJ, AgRg no CC 128.658/MG, 2ª Seção, Rel. Min. Raul Araújo, j. 27.08.2014, DJe 06.10.2014; STJ, CC 110.392/SP, 2ª Seção, Rel. Min. Raul Araújo, j. 24.11.2010, DJe 22.03.2011.

[20] Em acréscimo, argumenta-se que interpretação diversa constituiria vulneração ao princípio da isonomia, já que não há razões idôneas e constitucionalmente aceitáveis para que o proprietário fiduciário seja alçado a uma posição diferente daqueles outros beneficiados pela regra do art. 49, § 3º, da Lei de Recuperação e Falência.

[21] A jurisprudência também já preconizava nesse sentido: STJ, REsp 1.171.341/DF, 4ª T., Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 06.12.2011, DJe 14.12.2011.

[22] O texto legal deixou a desejar em termos de utilização correta do vernáculo (“sendo que, qualquer ...”), mas o equívoco não compromete o entendimento.

[23] TJSP, AI 1.184.797-0/6, 31ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Adilson de Araujo.

[24] Ap. Cível 10000892-28.2013.8.26.0068, 25ª Câmara de Direito Privado, Rel. Denise Andréa Martins Retamero, j. 27.11.2014.


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