659 - Sociedade do risco e responsabilidade penal objetiva: análise dos crimes de mera imputação do Direito dos Estados Unidos

 

Thiago Baldani Gomes De Filippo [1] – Juiz de Direito

 

        

A pós-modernidade passou a interferir diretamente no campo do Direito, de modo que seus conceitos herméticos, fechados, tiveram de se inclinar aos anseios sociais. Na era moderna, a ênfase repousava na validade das normas. Consoante a teoria de KELSEN, a análise deveria recair sobre os aspectos formais, tais como o rito, o modo, a hierarquia e a estrutura, absolutamente dissociados da ideia de eficácia. Já para pós-modernidade, a importância é justamente outra: de nada adianta a norma ser válida, com observância estrita aos trâmites regulares, se ela é ineficaz, redundando em certo desprezo por procedimentos e conceitos, se a resposta supostamente desejada por uma pretensa opinião pública é alcançada.

        

Especialmente no âmbito do Direito Penal, os efeitos da sociedade do risco são sentidos de maneira intensa. A existência de atividades humanas arriscadas, hoje possibilitada pelo avanço da tecnologia, pelo fluxo livre de informações e redução ou supressão de fronteiras, impõe ao legislador a missão hercúlea de encontrar soluções locais para problemas globais. Este quadro, aliado à insegurança e ao medo do porvir, faz inflar a quantidade de tipos penais, abrindo caminho para uma tipificação total, desmedida, que traz em si uma “promessa inconsequente” de diminuição dos riscos indesejados.[2]

 

Com isto, por um lado, acaba por ser arruinado o hermetismo tradicional do Direito Penal, de base científica, abalando-se a estrutura dos tipos penais pelos reclames de eficácia/eficiência punitiva, que também acabaram por relativizar os pilares fundamentais da dogmática penal clássica:[3] alarga-se o conceito de bem jurídico; avultam-se os crimes omissivos impróprios, com o elastecimento da figura do garantidor; flexibilizam-se regras de imputabilidade e antecipa-se a tutela penal para atividades que provocam riscos intoleráveis ao sistema, assumindo o tipo o papel justamente de estabelecer as fronteiras entre os riscos tolerados e os riscos proibidos. Podemos citar como exemplo recentíssimo a edição da Lei 13.260/2016 ("Lei Antiterrorismo"), que elenca uma série de crimes de perigo abstrato, incluindo os de posse (arts. 2o, 3o e 5o) e provoca referido abalo na dogmática penal ao admitir a punição da tentativa (art. 5o, caput) e a aplicação dos institutos da desistência voluntária e do arrependimento eficaz (art. 10) anteriormente ao início de atos executórios.

 

Nesse contexto, também ocorre uma releitura do conceito de dolo, em dois passos. Em um primeiro momento, seu conceito clássico é abalado, adquirindo novos contornos, mais amplos, utilizados para a condenação de terceiros, inclusive, que não praticaram diretamente a conduta. Em um segundo estágio, ele passa, inclusive, a ser dispensado, diante dos interesses em tela e da extrema dificuldade de sua prova.

 

No que tange ao primeiro estágio, podemos destacar a decisão do Supremo Tribunal Federal, no afamado julgamento do caso “mensalão” (Ação Penal 470), principalmente pela aplicação da teoria do domínio do fato, que serviu descaradamente para presumir a responsabilidade criminal, conforme podemos observar do seguinte trecho: Presumidamente, aos detentores do controle das atividades do Banco Rural, conforme dispõe o ato institucional da pessoa jurídica, há de se imputar a decisão (ação final) do crime. Nessa ação coletiva dos dirigentes é interessante da lição de CLAUS ROXIN sobre a configuração do domínio do fato...”.[4] Segundo se observa, a teoria foi aplicada pelo STF de maneira equivocada, de modo que ela nunca serviu para presumir responsabilidade, mas foi desenvolvida, ao menos sob a ótica de ROXIN, para se punir como autor, e não mero partícipe, não apenas aquele que detém o domínio o fato, diretamente (domínio da ação) ou em coautoria (domínio funcional do fato), mas também por domínio da vontade de terceiro (em virtude de coação, erro ou aparatos organizados de poder).[5]

 

Ainda assim, o modo pelo qual a teoria foi trabalhada pelo STF serviu para demonstrar certa tendência nacional de se afrouxar a exigência de prova robusta do conhecimento e vontade de praticar o tipo, principalmente no âmbito de atividades complexas, como a maior parte dos crimes empresariais.

        

Por outro lado, não temos notícia, até o momento, de posição doutrinária ou jurisprudencial no Brasil que defenda, com todas as letras, a responsabilidade penal objetiva. Por mais surreal que possa parecer essa ideia em nosso Direito, há sistemas jurídicos de países democráticos que adotam, sem maiores escrúpulos, essa modalidade de responsabilidade. É o caso dos Estados Unidos, cujos direitos penais de vários estados-membro dispensam prova de dolo ou culpa para uma série de crimes, como reflexo da pan-criminalização (overcriminalization).[6]

        

Pois bem. Nos EUA, a conduta criminosa é estruturada por meio de dois elementos: (1) actus reus: é o elemento material do crime, a conduta voluntária, comissiva ou omissiva; (2) mens rea: é o elemento psicológico, intencional, equiparado ao que conhecemos por dolo (há uma gradação: “intent”, “knowledge” e “recklesness”) e culpa (“negligence”),[7] evidenciando-se a adoção da teoria psicológica da culpabilidade, assim como previu VON LISZT para o Direito Alemão e há muito superada pelo Direito Penal pátrio.[8]

        

A regra, portanto, é a responsabilidade penal subjetiva e o Código Penal Modelo não admite qualquer exceção.[9] Todavia, em vários estados, é possível haver responsabilidade objetiva para certas modalidades de crime, conhecidos como strict liability crimes, expressão que pode ser traduzida por “crimes de mera imputação”, porque pouco importam a representação e vontade (dolo) ou a previsibilidade objetiva do resultado (culpa).  Trata-se, portanto, de crimes que dispensam a prova do elemento subjetivo, mediante a combinação de duas variáveis: (1) a importância do interesse tutelado pela norma penal; (2) a dificuldade de se provar o dolo.[10]

        

A maioria dos códigos penais, por exemplo, estabelece ser irrelevante o fato de o agente desconhecer a idade da vítima dos crimes de estupro de vulnerável, sob o fundamento de que a lei confere proteção especial às crianças e adolescentes e a necessidade de prova dessa elementar enfraqueceria o escopo protetivo da norma.[11] Por outra banda, a responsabilidade penal objetiva cai como uma luva às chamadas public welfare offenses, tipos penais que visam à proteção de interesses difusos (meio ambiente, segurança viária, consumidores, mercado financeiro, saúde pública etc.), bens jurídicos sobre os quais repousa a tutela penal na sociedade do risco.[12] Enfaticamente, de modo geral, o crime de vender bebidas alcoólicas a adolescentes costuma ser de mera imputação. Portanto, de nada adianta ao acusado provar que envidou todo o esforço necessário para descobrir a idade do consumidor. Ainda que este, por exemplo, tivesse se valido de um documento de identidade falso seria possível se cogitar da responsabilidade penal do fornecedor.[13] Em outras situações, atendo-nos a casos mais simples, podemos citar o de um cidadão do Kansas que foi condenado por trafegar acima do limite de velocidade, mesmo diante de prova de que o piloto-automático que não estava funcionando adequadamente e indicava velocidade inferior à verdadeira;[14] e a condenação de um empresário de Baltimore, presidente de uma rede nacional alimentícia, pela venda de gêneros inadequadamente protegidos contra a ação de roedores, prescindindo-se de prova de dolo, sendo o suficiente sua posição de comando na organização,[15] diante da reconhecimento de sua responsabilidade fabricada (“vicarious liability”), instituto que não se confunde com a cegueira deliberada (“Willful blindness”), hoje mais conhecida entre nós, que equipara ao conhecimento a “desconsideração consciente de um risco substancial e injustificável” acerca do cometimento de um crime.[16]

 

A posição da Suprema Corte dos EUA acerca da constitucionalidade dos crimes de mera imputação mantém-se mais ou menos consentânea com uma decisão do início dos anos 1950: não se admite a responsabilidade penal objetiva em se tratando de crimes naturais (“true crimes” ou mala in se crimes), consoante o senso predominante do common law, tal qual como os delitos violentos: homicídio, roubo, estupro com violência real, entre outros. Para os demais, conhecidos como mala prohibita crimes, nada impediria que a lei dispensasse a prova do dolo relativamente a todos ou parte dos elementos do tipo.[17] Todavia, como assentou a Suprema Corte décadas mais tarde, considerando-se que os crimes de mera imputação compõem a exceção, a mens rea deve ser expressamente dispensada pelo tipo, de modo que, no silêncio, o elemento intencional deve ser devidamente demonstrado.[18]

 

Ilustrativamente, diferente posição tomou a Suprema Corte do Canadá ao se debruçar sobre a constitucionalidade dos crimes de mera imputação. Decidiu-se pela incompatibilidade desses crimes com o texto constitucional, admitindo-se, todavia, a possibilidade de inversão do ônus de prova, tal qual uma responsabilidade subjetiva imprópria: pode haver tipos que transfiram ao réu o ônus de demonstrar a sua não-culpa, de que ele se cercou de todos os cuidados necessários para evitar o resultado lesivo.[19]

 

Ora, o Brasil vive uma fase de transição, sendo perceptível a tendência de alargamento da tutela penal e, com ela, o conceito de dolo, de modo que a dogmática penal tradicional passou a sofrer ataques em prol da necessidade de combate à criminalidade, cada vez mais complexa. Não cremos, todavia, que chegaremos ao extremo de termos leis que dispensem expressamente o tipo subjetivo, porque a ideia de nullum crimen sine culpa parece estar, felizmente, arraigada ao nosso sistema. Uma lei que assim o fizesse, assim esperaríamos, seria facilmente reputada por inconstitucional.

 

Todavia, não podemos negar a existência de resquícios de responsabilidade penal objetiva em nosso sistema. Dois exemplos da jurisprudência são sintomáticos. O primeiro deles consiste na inversão da prova do dolo em alguns delitos contra o patrimônio, como o furto e a receptação. Se o sujeito é encontrado na posse da res, cabe a ele a prova de sua não-culpa, admitindo-se, com isso, a responsabilidade subjetiva imprópria no Direito Penal.[20] O segundo é a hipótese da incidência de causas especiais de aumento, independentemente de prova de que o agente conhecia essa circunstância. Concretamente, no caso de tráfico de drogas praticado nas dependências ou imediações de escolas, hospitais etc., basta a mera proximidade geográfica, ignorando-se a prova de que o agente sabia ou devesse saber, dessa circunstância, afigurando-se claro exemplo de responsabilidade penal objetiva quanto ao agravamento da sanção.[21]

 

Em que pese a solidificação dessas ideias nos EUA, cremos que no direito penal não deve haver espaço para a negociação da culpabilidade, por mais constrangedores que sejam os interesses estatais acerca da proibição criminal de certas condutas. No âmbito extrapenal, há vários casos de responsabilidade objetiva, a depender da envergadura dos interesses em jogo e/ou das dificuldades de prova da culpa. Lembremos, hipoteticamente, da responsabilidade por infrações da legislação tributária (art. 136 do Código Tributário Nacional), a responsabilidade do fornecedor perante os consumidores decorrente de vício ou fato do produto e de serviços (arts. 12 a 25 do Código de Defesa do Consumidor) e a responsabilidade do empresário e por fato de terceiros (arts. 931 e 932 do Código Civil); todas elas de caráter objetivo, justificado pelo escopo protetivo dessas normas e da distribuição dos riscos em sociedade.

 

Decerto, a complexidade de certas atividades criminosas demanda a utilização de novos paradigmas, que acabam por redundar na utilização de novas teorias, que podem ser úteis para a solução de problemas e ao combate à criminalidade sofisticada. No entanto, sem contar o necessário rigor dogmático de que deve se valer todo aquele que se dispõe a aplica-las, elas não podem abalar o núcleo imponderável de certas garantias fundamentais, dentre elas a culpabilidade, construídas e conquistadas a duras penas e tão caras a um Estado Democrático de Direito. 

                 



[1] Mestre em Direito Comparado pela Samford University, Cumberland School of Law. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná. Juiz Docente Formador da Escola Paulista da Magistratura nas áreas de Penal, Processo Penal, Infância e Juventude e Idoso. Coordenador do Núcleo de Direito Comparado Brasil-EUA da Escola Paulista da Magistratura. Associado ao IBCCRIM e ao IBRASPP. Juiz de Direito da 2ª Vara Criminal da Comarca de Assis (SP).

[2] BARJA DE QUIROGA, Jacobo Lopes. El moderno derecho penal para una sociedad de riesgo. Madrid: Poder Judicial, 1997, p. 296.

[3] VELLUDO SALVADOR, Alamiro. Tipicidade penal e sociedade de risco. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 119.

[4] STF, Pleno, APn 470/MG, Julgado em 17/12/2012, p. 1162, disponível em «http://www.stf.jus.br/portal/inteiroTeor/ obterInteiroTeor.asp?idDocumento=3678648» ?

[5]ROXIN, Claus. Novos estudos de direito penal. Alaor Leite (org.); Luís Greco (trad.) São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 19. Ver também ALFLEN, Pablo Rodrigo. Teoria do domínio do fato. São Paulo: Saraiva, 2014, pp. 124-150.

[6] HUSAK, Douglas. The limits of the criminal law. Nova Iorque: Oxford, 2008.

[7]  SINGER, Richard G. e LA FOND, John Q. Criminal Law. 3a ed. Nova Iorque: Aspen Publishers, 2004, p. 3, pp. 50-57.

[8] BITENCOURT, Cezar Roberto. Erro de tipo e erro de proibição: uma análise comparativa. 6a ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p.93.

[9] Nos EUA, cada Estado-membro possui o seu código penal, porém em 1962, a American Law Institute, uma instituição privada de juristas, elaborou o Código Penal Modelo, de adoção facultativa pelas unidades federativas. O texto substitui a expressão mens rea por culpabilidade (“culpability”) e não admite qualquer modalidade de responsabilidade penal objetiva (Seção 2.05).

[10] SINGER, Richard G. e LA FOND, John Q., op.cit., pp. 102-103.

[11] California, People v. Olsen, 685 P.2d 52 (Cal. 1984).

[12] Diferentemente do Brasil, os EUA não trabalham com a noção de bem jurídico, como um “dado”, um “ente abstrato”, mas, antes, com a noção de ofensa a direitos de terceiros (harm to others). Nesse sentido: FEINBERG, Joel. Harm to others: the moral limits of the criminal law. Vol. I. Nova Iorque: Oxford, 1985.

[13] SINGER, Richard G. e LA FOND, John Q., op.cit., pp. 101-102.

[14] State v. Baker, 571 P.2d 65 (Kan. 1977).

[15] United States v. Park, 421 U.S. 658 (1975).

[16] É o que estabelece o Código Penal Modelo em sua Seção 2.02(2)(c), ao se referir ao fato de o agente “consciously disregards a substantial and unjustifiable risk that the material element exists or will result from his conduct.”. Ver também MARCUS, Jonathan L. Model Penal Code Section 2.02(7) and Willful Blindness. The Yale Law Journal, vol. 102, n. 8, 1993, pp. 2231-2257.

[17] Morissette v. United States, 342 U.S. 246 (1952).

[18] Staples v. United States, 511 U.S. 600 (1994).

[19] Regina v. City of Sault Ste. Marie, 85 D.L.R. 3d 161 (1978).

[20] Por exemplo: “(...) Se o objeto furtado é encontrado em poder do apelante, inverte se o ônus da prova, cabendo a ele provar de forma convincente a origem lícita do bem. - (...) - Recurso provido em parte. (TJMG - 4ª Câm. Crim. - Ap. n.1.0016.10.009500-5/001 417.704-2 - Rel. Des. Doorgal Andrada - julg. 08/05/2013, publ. 15/05/2013) – grifamos.

[21] Nessa direção, contentando-se com a posição geográfica do acusado, sem qualquer alusão ao elemento cognitivo quanto à proximidade com a escola, TJSP, 11ª Câm. Crim., Ap. 0002863-54.2014.8.26.0028, j. em 15.06.2016, v.u. Nesses casos, a maior parte dos direitos penais dos EUA encampa a possibilidade de agravamento da pena, independentemente de prova do dolo quanto a essa circunstância, diante da denominada “Greater Crime Theory”: se o sujeito atuou com vontade livre e consciente para o cometimento de um crime, a ele podem ser imputadas todas as circunstâncias desfavoráveis, ainda que não previstas. Aludida teoria é expressamente rechaçada pelo Código Penal Modelo, que estabelece em sua Seção 2.04(2) que o erro ““shall reduce the grade and degree of the offense of which he may be convicted to those of the offense of which he would be guilty had the situation been as he supposed.” 

 


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