Aspectos jurídicos da transexualidade são tratados em aula na EPM

Realizou-se, no dia 8, na EPM, a aula “O reconhecimento de direitos e a concretização da dignidade dos transexuais”, do curso Temas controvertidos dos direitos humanos, ministrada pela juíza Camila de Jesus Mello Gonçalves (foto), coordenadora do curso e da área de Filosofia e Direitos Humanos da EPM.

 

A palestrante salientou, preliminarmente, que, embora de natureza delicada e complexa, o tema precisa ser enfrentado, porque a transexualidade é um fenômeno real da vida das pessoas. “Precisamos investigar qual o papel do Direito ao lidar com essa situação”, ressaltou.

 

Ela observou que existe uma confusão entre os termos homossexualidade, transexualidade e travestismo e explicou que transexual é aquele que se identifica com o gênero oposto ao de seu sexo biológico. “Por um lado, existe a percepção do sexo biológico e, por outro, há a noção de gênero, que está no campo da cultura e refere o papel social desempenhado na comunidade. Na maioria das vezes, esse papel coincide com o esperado para o sexo biológico, mas isso não ocorre no caso do transexual”. Ela ensinou, ainda, que isto não se confunde com a orientação sexual, que pode ser homossexual ou heterossexual, sem conflito de identidade. “No transexual há um efetivo conflito de identidade”.

 

Em seguida, esclareceu que a adoção do termo transexualidade, ao invés de transexualismo (a exemplo de homossexualidade), atende a uma reivindicação do movimento gay, porque o sufixo “ismo” veicula uma conotação de doença. “Há um século, o homossexualismo era tratado como doença e as pessoas recebiam choques elétricos e ficavam confinadas para ‘curar’ a orientação pelo mesmo sexo. A sociedade evoluiu a ponto de reconhecer, hoje, sem grandes controvérsias, excetuando as religiosas, a possibilidade da orientação homossexual. No caso da transexualidade, estamos vivendo um momento parecido”, observou.

 

Camila Gonçalves informou que alguns países, como a França, já legislaram para excluir a conotação de doença da transexualidade, e que a classificação como doença, subsistente no Código Internacional da Organização Mundial de Saúde, passa por revisão de uma comunidade internacional de médicos, com previsão de aprovação para 2015. “Além de livrar a pessoa de um estigma, a medida é inclusiva, pois ela passa a ser vista não como alguém que tem uma patologia, mas que detém uma especificidade que precisa ser respeitada e acolhida dentro de um ordenamento que pretende a tutela dos direitos humanos”, salientou.

 

Adiante, ensinou que a identificação com o gênero oposto pode se manifestar em várias fases da vida. “Há manifestações precoces em crianças e a condição de incapaz gera uma grande polêmica sobre o tratamento hormonal para inibir características do sexo biológico, moldar a personalidade e facilitar a inclusão social. O questionamento ético sobre a viabilidade da decisão dos pais é pertinente porque decidem o gênero da criança, talvez de forma irreversível”.

 

A professora citou, ainda, um documentário sobre o caso de uma pessoa de sexo biológico masculino, que se casou, teve filhos e netos, e só 50 anos depois, em suas próprias palavras, “assumiu a mulher que sempre soube ser”.

 

Transexualidade e direitos humanos

 

Camila Gonçalves afirmou que os aspectos problemáticos da transexualidade, como o constrangimento e a discriminação, situam-se na esfera dos direitos humanos. “Isto é algo com que o Direito tem que lidar, na medida em que muitas vezes o sofrimento do transexual é provocado pelas instituições. Ele passa a se comportar de acordo com o gênero oposto, inclusive transformando-se fisicamente, mas mantém sua qualificação de origem, porque, em nosso sistema jurídico, a regra é a imutabilidade do estado civil e do nome”. Ela observou que esse conflito entre o estado aparente e a identidade civil faz com que a pessoa sinta-se constrangida ao se servir dos serviços públicos, deixando, inclusive, de ir à escola, procurar emprego ou ir ao hospital.

 

A seguir, ressaltou que a atenção a essa questão reflete a transição de uma proteção dos direitos humanos em abstrato para uma específica de pessoas em situação de vulnerabilidade. Ela destacou a urgência das respostas no plano jurídico, observando que pesquisas indicam que essas pessoas, privadas de qualificação e inserção no mercado de trabalho, acabam ingressando na prostituição. “O conflito interno dos transexuais também gera um alto índice de mutilação dos órgãos sexuais rejeitados e de suicídio. Além disso, a ONU e a OEA tem várias pesquisas que apontam os transexuais como vítimas preferenciais de um ciclo de violência cotidiana, assassinato, de tráfico de pessoas motivado pela dificuldade de identificação e facilidade de aliciamento, pela vulnerabilidade perante as instituições de seu país”.

 

Medidas internacionais concretas de proteção aos transexuais

 

A palestrante comentou que, na Inglaterra, a possibilidade de alteração do nome e do sexo nos documentos do transexual foi reconhecida em 2002, pela Corte Europeia de Direitos Humanos, após sucessivas recusas, em um caso paradigmático: “O fundamento mais importante dessa decisão foi o respeito à vida privada, no sentido de que ao Estado não importa o grau de intimidade individual relativo à verdade biológica, e que a esfera da vida privada só importa à pessoa”. Ela acrescentou que, após esse julgamento, a comunidade europeia vem se mobilizando e exortando os Estados membros a regulamentarem a transexualidade. “Os países estão legislando no sentido de prever e permitir a mudança de nome e sexo do transexual. A lei da Inglaterra é de 2004, enquanto que a Espanha editou lei interna em 2007 e Portugal, em 2011”, ensinou.

 

Em relação ao papel do Direito na prevenção da violência contra essas pessoas, destacou seu papel simbólico: “Quando a instituição jurídica de um país legitima e regulamenta uma situação, dá a ela autoridade e respeitabilidade perante a comunidade. E quando o Direito deixa à margem de regulamentação determinadas situações, contribui para a invisibilidade, a discriminação e a vulnerabilidade, na medida em que não a inclui – e o que não é regulamentado é como se não existisse, remanescendo a acentuada dicotomia entre a realidade de constrangimentos e o plano do Direito”, ensinou.

 

O plano jurídico do tratamento da transexualidade no Brasil

 

Segundo Camila Gonçalves, o Conselho Federal de Medicina vem regulamentando a possibilidade de operação de transexuais. A última regulamentação, a Resolução nº 1.955, de 2010, entendeu que a operação de transformação de homem para mulher já alcança resultados técnicos e funcionais satisfatórios, estando autorizada em hospital privado e fora do âmbito da pesquisa. Esse patamar ainda não foi alcançado na transformação de mulher em homem e as operações só podem ocorrer no âmbito da pesquisa, em fase experimental.

 

Ela observou que, tradicionalmente, a ideia da transexualidade esteve relacionada ao debate do direito ao corpo e da possibilidade de cirurgia para modificação do órgão sexual. Entretanto, por influência dos ativistas dos direitos humanos e dos próprios transexuais, começou-se a reivindicar o direito à identidade, independentemente do funcionamento corporal, alcançando uma transformação da aparência sem fazer a operação de mudança de sexo.

 

Nesse sentido, afirmou que a mudança de sexo começou a ser rechaçada pela comunidade transexual em razão do custo e por não existir uma disfunção de ordem física que a justificasse, além da dependência de medicamentos e da necessidade de acompanhamento médico que sucedem a cirurgia. “No fundo, há a percepção de que, por mais que a pessoa se transforme fisicamente, subsiste uma limitação, pois os órgãos internos jamais serão modificados. Diante disso, a reivindicação passou a ser o reconhecimento jurídico da identidade de gênero, independentemente da operação. Haveria a manutenção do órgão biológico, mas seriam modificados os registros de nome e de sexo nos atos jurídicos para o reconhecimento social da identidade de gênero”, comentou.

 

Camila Gonçalves observou, ainda, que a possibilidade de mudança do nome civil e sexo da pessoa por averbação no registro não se confunde com a autorização do nome social. “O nome social do transexual já é adotado por disposição de decretos que obrigam todos os órgãos da administração direta e indireta dentro de seus âmbitos a utilizarem o nome social da pessoa. E já é uma conquista no âmbito do Conselho Federal de Psicologia”, esclareceu.

 

No âmbito paulista, a professora comentou a primeira decisão autorizando a alteração do nome de uma pessoa transexual não operada, da 5ª Câmara de Direito Privado, em fevereiro de 2014. E informou que até então, no Brasil, decisões favoráveis à mudança de nome, ou de nome e sexo, sempre estavam vinculadas a uma cirurgia de mudança de sexo. Sob esse aspecto, apontou uma defasagem entre o plano jurídico e o das políticas públicas para a saúde: “O Estado brasileiro está deixando essas pessoas à margem da legislação, porque não está conseguindo inclui-las juridicamente. Mas a cirurgia para a mudança de sexo já é permitida pelo Conselho Federal de Medicina, foi regulamentada pelo Ministério da Saúde e é realizada pelo SUS.”

 

Ela comentou, ainda, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275/2009, pela qual o Ministério Público Federal pede uma interpretação conforme do artigo 58 da Lei de Registros Públicos, sob a alegação de que os transexuais são vítimas de discriminação e violência, tendo seus direitos violados. Sua pretensão é a de que o Brasil reconheça o direito de mudança de nome e de sexo com a dispensa da cirurgia.

 

A professora mencionou, ainda, dois projetos de emendas à Constituição para inclusão do direito à identidade de gênero no capítulo dos Direitos Fundamentais e proibição da discriminação no trabalho por esse motivo. Discorreu também sobre o Projeto de Lei nº 5.002, de fevereiro de 2013, cuja postulação é a de que seja reconhecido o direito da identidade de gênero, independentemente de qualquer exigência de cirurgia. “Em 2012, a Argentina aprovou um projeto nesse sentido. Se for aprovado o projeto brasileiro, estaríamos adequados à perspectiva mais moderna do mundo no trato da transexualidade”, comentou.

 

Finalmente, quanto à segurança jurídica da alteração registral de nome e sexo, Camila Gonçalves ponderou que o princípio da veracidade não fica comprometido frisando que, na convivência social de uma comunidade regulada pelo Direito, interessa ao Direito, como instrumento de regulação do convívio, mais a aparência do que a intimidade. “Se o problema é segurança jurídica, ela não me parece violada se houver uma coerência entre o sexo do registro e a aparência e vivência da pessoa na comunidade. Ao contrário, manter uma divergência entre o registro e a aparência gera muito mais perplexidade e insegurança. E, de todo modo, a segurança jurídica também estaria preservada pela manutenção da certidão de nascimento, concluiu.

 

ES (texto e foto)


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