Desconsideração da personalidade jurídica no CDC é tema do curso de Direito do Consumidor

A origem, a evolução e a positivação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica no Direito brasileiro, com foco no Código de Defesa do Consumidor (CDC), foram analisadas na EPM, no último dia 26, pelo desembargador Itamar Gaino, conselheiro da Escola. A aula encerrou o Módulo II do Curso de especialização em Direito do Consumidor e teve a participação do juiz Paulo Rogério Bonini, professor assistente do curso.

 

Itamar Gaino esclareceu, inicialmente, que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi esboçada pelas cortes inglesas e norte-americanas e depois disciplinada academicamente pelo professor alemão Rolf Serik, da Universidade de Tubingen, em 1953, numa obra em que procura salientar a necessidade de, em determinadas situações, desconsiderar a personalidade jurídica, ou seja, afastar o princípio da autonomia patrimonial aplicável à pessoa jurídica, e apreender seus bens para a satisfação de um crédito no processo de execução.

 

“A teoria foi pensada em termos do que hoje chamamos desconsideração inversa. Derivou de execuções contra pessoa física, sócia de uma determinada pessoa jurídica, que abusava da sociedade em prejuízo de seus credores particulares, transferindo o seu patrimônio pessoal para o acervo patrimonial da empresa, porque tinha a tranquila condição de sócio majoritário e controlador da sociedade, não correndo riscos. Nesta perspectiva, o juiz estava autorizado a desconsiderar a personalidade jurídica para que os atos executórios fossem direcionados ao patrimônio da sociedade para o pagamento da dívida particular do sócio”, ensinou Itamar Gaino.

 

De acordo com o palestrante, a teoria veio a ser incorporada no Direito brasileiro por volta de 1860, com o primeiro trabalho acadêmico sobre o tema, de autoria do professor de Direito Comercial Rubens Requião, da Universidade Federal do Paraná. Nessa obra, ele se propôs a dissertar sobre uma questão que lhe fora formulada, qual seja, “se a pessoa jurídica não se confunde com as pessoas físicas que a compõem, pois são personalidades radicalmente distintas, se o patrimônio da sociedade personalizada é autônomo, não se identificando com o dos sócios, tanto que a cota social de cada um deles não pode ser penhorada em execução por dívidas pessoais, seria então fácil burlar o direito dos credores, transferindo previamente para a sociedade comercial todos os seus bens; desde que a sociedade permanecesse sob o controle desse sócio, não haveria inconveniente para ele que seu patrimônio fosse administrado pela sociedade, que assim estaria imune às investidas judiciais de seus credores”.

 

Após a explicitação, o palestrante ponderou que uma parte da questão está superada, pois, se naquele tempo não era possível a penhora de cotas sociais, hoje, no entanto, é sedimentado o entendimento da possibilidade dessa penhora. Ele lembrou, ainda, que Rubens Requião salientou na obra dissertativa a relatividade do princípio da autonomia patrimonial e a necessidade de afastá-lo para coibir a afronta a princípios gerais de Direito e não permitir a fraude contra terceiros credores, que seria praticada com o uso indevido da personalidade jurídica.

 

Previsão da desconsideração da personalidade jurídica no CC e no CDC

 

Em prosseguimento, Itamar Gaino ensinou que, no âmbito do Direito brasileiro, a teoria foi positivada primeiramente na lei antitruste. Depois, foi incorporada nas leis de meio ambiente, no CDC e, finalmente, no Código Civil (CC). Afirmou ainda, que, antes da formatação da teoria, embora não fosse comum, os tribunais brasileiros já permitiam a apreensão de bens sociais para a satisfação de crédito de terceiro perante o sócio. Como não havia uma teoria para essa prática, invocavam-se as regras legais relacionadas aos atos ilícitos contidas no CC.

 

Ele lembrou que, além da desconsideração inversa, veio a ser consagrada nos diplomas brasileiros a chamada “desconsideração direta”, contrária à que serviu de base para a formatação da teoria. Esta ocorre quando a execução contra a sociedade é redirecionada contra os sócios.

 

O professor revelou, ainda, a ocorrência da cisão da teoria em “teoria maior” e “teoria menor” da desconsideração da personalidade jurídica. E explicou que a teoria maior é aquela prevista no artigo 50 do CC e na primeira figura do artigo 28 do CDC. De acordo com essas formulações, a desconsideração da personalidade jurídica depende da presença de um requisito legal. No âmbito do CC, o requisito é o abuso da personalidade, marcado pelo desvio de finalidade ou pela confusão entre o patrimônio do sócio e o da empresa. Neste último caso, a teoria é objetiva; naquele – o da atuação intencional dos sócios direcionada a prejudicar terceiros –, a teoria é subjetiva.

 

Por outro lado, a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, prevista no § 5º do artigo 28 do CDC, prescinde de requisito legal para ser decidida pelo juiz, salvo o requisito da insolvência da pessoa jurídica: “também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.

 

Em relação aos efeitos da desconsideração, Itamar Gaino esclareceu que os efeitos situam-se no plano da eficácia ou da ineficácia. “Quando o juiz desconsidera a personalidade jurídica, são considerados ineficazes os atos de transferência de patrimônio, seja do sócio para a pessoa jurídica, seja da pessoa jurídica para o sócio, e por isso os bens são penhorados e levados à hasta pública. No entanto, se antes da hasta pública o devedor pagar a dívida, todos os atos subsistem”, ensinou.

 

Adiante, ele afirmou a impossibilidade de desconsideração da personalidade jurídica da chamada empresa individual (ME), por não haver distinção entre o patrimônio da empresa e o de seu dono. “A rigor, nem se trata de uma pessoa jurídica. Ela é tratada como pessoa jurídica apenas no âmbito fiscal. A desconsideração, nesse caso, é um erro, embora o cometa o advogado e, às vezes, o juiz”, asseverou.

 

Alcance do artigo 28 do CDC

 

Em prosseguimento, o palestrante passou a comentar as hipóteses da autorização da desconsideração da personalidade jurídica constante do artigo 28 e parágrafos do CDC. Ele afirmou que no confronto entre os direitos do consumidor de ter seu crédito satisfeito e dos sócios da empresa, de não ter seu patrimônio invadido, ocorre a preferência ou a prevalência do direito do consumidor (§ 5º). Em seu entendimento, a grande amplitude e diversidade do dispositivo torna irrelevante todas as hipóteses antecedentes, pois não exige nenhuma das situações fáticas nelas elencadas e defende o consumidor em qualquer situação.

 

De acordo com Itamar Gaino, quando surgiu o CDC, muitos doutrinadores bateram-se contra o dispositivo, sob o argumento de que, por si, já seria suficiente. “Não haveria necessidade do disposto no caput e nas demais hipóteses da desconsideração, configurando-se antinomia ou mero erro de redação. Nesta perspectiva, defenderam sua invalidade. Mas essa corrente ficou vencida e o parágrafo 5º subsistiu, representando com força a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica”. Adiante, referiu casos paradigmáticos de desconsideração da personalidade jurídica por tribunais brasileiros, estribada no parágrafo 5º do artigo 28 do CDC. E afirmou que já está sedimentada a orientação dos tribunais para aplicação do dispositivo sempre que a sociedade estiver insolvente.

 

Aspectos processuais da desconsideração da personalidade jurídica

 

Itamar Gaino discorreu, finalmente, sobre as normas materiais da teoria, efetivada necessariamente no âmbito processual. Afirmou que, na execução direta de título extrajudicial ou judicial, a decisão de desconsideração da personalidade jurídica do sócio da sociedade executada implica em sua legitimação no polo passivo como responsável subsidiário pelo pagamento da dívida, na forma do inciso II do artigo 592 do Código de Processo Civil (CPC). Ele observou que, nessa hipótese, o sócio é citado para pagar a dívida ou, oferecendo bens à penhora, apresentar impugnação.

 

Asseverou, ainda, que a subsidiariedade da responsabilidade do sócio tem uma consequência prática importante, qual seja, o benefício de ordem  previsto no artigo 1.024 do CC e 596 do CPC. Nesta perspectiva, quando o sócio é chamado a pagar pela sociedade, pode invocar o benefício, pedindo ao juiz que, primeiro, sejam executados os bens da sociedade, hipótese em que deverá indicá-los, uma vez que não se pode excluir a possibilidade da existência de bens da sociedade desconhecidos pelo exequente. Adiante, versou sobre os diversos meios de defesa relacionados à matéria na execução, quais sejam, o agravo de instrumento da decisão, a exceção de pré-executividade e os incidentes de embargos do devedor e de impugnação à penhora.

 

Encerrando a exposição, Itamar Gaino comentou o procedimento específico para a desconsideração da personalidade jurídica, constante dos artigos 62 ao 65 do novo CPC , em tramitação no Congresso Nacional.

 

ES (texto)

 


O Tribunal de Justiça de São Paulo utiliza cookies, armazenados apenas em caráter temporário, a fim de obter estatísticas para aprimorar a experiência do usuário. A navegação no portal implica concordância com esse procedimento, em linha com a Política de Privacidade e Proteção de Dados Pessoais do TJSP