Origem e fundamentos do Tribunal Penal Internacional são analisados no curso de Direito Processual Penal

O juiz Marcos Alexandre Coelho Zilli discorreu sobre a criação e o funcionamento do Tribunal Penal Internacional na aula do último dia 19 do 7º Curso de especialização em Direito Processual Penal da EPM. A exposição contou com a participação do juiz Jayme Walmer de Freitas, coordenador do curso.

 

O palestrante iniciou a preleção com o emblemático relato do julgamento e condenação à prisão perpétua do criminoso de guerra nazista Nikolaus 'Klaus' Barbie pela corte francesa de Lyon, em 1987. De acordo com o palestrante, o oficial da Waffen-SS, incumbido de combater a resistência francesa durante a II Guerra Mundial, foi julgado por diversos crimes de guerra praticados contra o Estado francês, entre os quais a prisão e encaminhamento de 44 crianças judias refugiadas em vilarejo nos arredores da cidade de Lyon, descobertas e encaminhadas ao campo de extermínio de Auschwitz, no auge do Holocausto. “Todas foram mortas”, afirmou.

 

“Mas a grande indagação que surge – e que constitui o ponto de partida para a nossa digressão histórica – seria um certo inconformismo. Qual a base jurídica que daria sustentação a esse tipo de processo? Como seria possível que uma pessoa, quarenta anos após a prática de determinados fatos, pudesse ainda ser julgada e condenada? A questão envolveria prescrição ou os fatos seriam imprescritíveis? Em que medida o Estado francês teria legitimidade e sobretudo competência jurisdicional para julgar determinados acontecimentos?”, indagou o palestrante, como mote para a discussão.

 

De acordo com Marcos Zilli, o entendimento da base desse julgamento havia de ser buscado nos primórdios da construção e da edificação da Justiça Penal Internacional. Ele lembrou que os primeiros acontecimentos indicados pela doutrina especializada neste sentido remontam ao século XIX, “quando temos alguns atos que indicam uma energia internacional dirigida à punição de determinados atos, antes do surgimento de uma consciência quanto aos contornos desse Direito Penal Internacional, que sequer recebia esta denominação”. E citou “atos informados muito mais para resguardo de interesses comerciais que propriamente humanitários, como a punibilidade dos atos de pirataria, uma série de tratados internacionais que proibiram o comércio de escravos, e outros que dão base ao chamado Direito Internacional Humanitário, tratados internacionais que buscam estabelecer um padrão de moralidade dos conflitos armados”.

 

Ainda na senda da retrospectiva, Marcos Zilli comentou a realização da conferência de paz que culminou na assinatura do Tratado de Versalhes, em 1919, “um documento que contém uma série de dispositivos normativos que restabelecem um desenho da geopolítica ao final da I Guerra Mundial”. Também destacou o artigo 227 do documento, que traz o reconhecimento da responsabilidade do kaiser alemão por atos contra a moral internacional e contra a autoridade dos tratados internacionais. “A importância desse dispositivo é que ele, pela primeira vez, ultrapassa a responsabilidade dos estados e proclama, no plano internacional, a responsabilidade de um indivíduo por atos que seriam a ele imputados”, comentou.

 

Além desse acontecimento jurídico, ele discorreu sobre o primeiro da série de julgamentos realizados pelo Tribunal de Nuremberg, entre 1945 e 1946, um tribunal criado para julgar os crimes contra a paz, os crimes de guerra e contra a humanidade, ao qual foram levados os principais responsáveis pela estrutura político-governamental do regime nazista.  Dos 23 acusados, 12 foram condenados à morte; três à prisão perpétua; quatro a diferentes penas de prisão; e três absolvidos, sendo que dois cometeram suicídio durante o julgamento.

 

“Notem que não tínhamos nessa época a referência ao genocídio, ainda não caracterizado como um ilícito penal. Embora já houvesse estudos que o identificassem como um fenômeno criminal, do ponto de vista sociológico e histórico, não havia uma aderência do conceito pela comunidade jurídica”, observou o palestrante.

 

A seguir, falou sobre as críticas formuladas aos tribunais de Nuremberg e Tóquio (Tribunal Militar para o Extremo Oriente, criado em 1945), de natureza dogmático-processual e de cunho filosófico ético e moral. Entre essas críticas, comentou aquelas relacionadas à violação da legalidade penal, à pecha de violação do juiz natural (já que seriam jurisdições excepcionais de tribunais criados post-factum, para o julgamento de determinados crimes e pessoas). Além disso, destacou o comprometimento da imparcialidade, “na medida em que foram compostos apenas pelas nações vitoriosas, caracterizando uma Justiça dos vitoriosos diante dos derrotados”.

 

Os princípios basilares do Direito Penal Internacional

 

De acordo com o professor, a Assembleia Geral das Nações Unidas, realizada em 1946, proclamou os princípios consolidadores do Direito Penal Internacional, fundados nas premissas do julgamento de Nuremberg. Os postulados reconhecidos pela Assembleia Geral da ONU são os da responsabilidade penal da pessoa que comete um crime, assim definido pelo Direito Penal Internacional; o de que a omissão do sistema nacional de punição da conduta não exime a responsabilidade penal do agente perante a arena internacional; e o de que a condição de chefe de Estado ou de Governo não isenta o agente da responsabilidade penal internacional – inaplicabilidade das imunidades.

 

“O mais importante e representativo desses tribunais é que eles deflagram a longa trajetória que fixa um fim do monopólio das jurisdições nacionais em matéria penal, dando espaço para a construção do que hoje chamamos Direito Penal Internacional. Este é um aspecto bastante revolucionário”, comentou o palestrante.

 

Em prosseguimento, ele discorreu sobre o surgimento do conceito de genocídio, termo criado pelo jurista judeu polonês Raphae Lemkin, em 1944, para designar crimes que têm como objetivo a eliminação da existência física de grupos nacionais, étnicos, raciais, e/ou religiosos. Após o Holocausto, Lemkin fez campanha pela criação de leis internacionais que definissem e punissem tal crime. Esta pretensão tornou-se realidade em 1948, com a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio.

 

O palestrante comentou, a propósito, o genocídio étnico praticado na guerra civil em Ruanda, em 1994, entre etnias hutus e tutsis e sobre a criação de um tribunal penal internacional ad-hoc pelo Conselho de Segurança da ONU para julgamento desses crimes.

 

A criação do Tribunal Penal Internacional

 

Marcos Zilli discorreu, finalmente, sobre criação do Tribunal Penal Internacional, por força do Artigo 3º do Estatuto de Roma, redigido na Conferência de Roma, em 1998, firmado por 129 países e ratificado por 122. O TPI, estabelecido em  Haia desde  2002. “O TPI é competente para julgar os crimes  mais graves cometidos por indivíduos, caracterizados como os crimes internacionais em sentido estrito – genocídios, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e os crimes de agressão. Diferentemente da competência para o julgamento dos crimes transnacionais, como o tráfico internacional de drogas, a lavagem de capitais, o crime organizado, o tráfico de pessoas, etc., cuja competência é da Justiça Federal dos Estados.

 

De acordo com o palestrante, o poder punitivo internacional está assentado em duas ideias básicas, quais sejam: a) o reconhecimento de que há crimes que extrapolam a dimensão e o interesse dos Estados nacionais; b) o reconhecimento de que há um poder punitivo internacional, que rompe com a noção tradicional de que os Estados nacionais detém o monopólio da jurisdição penal.

 

“Além do Estatuto de Roma, fonte primária, o marco normativo que dá arcabouço ao Tribunal Internacional é composto pelo Regulamento de procedimento e prova (uma espécie de código de processo penal), Elementos de crimes (uma série de artigos que detalham os crimes internacionais previstos no Estatuto de Roma), Regulamento da Corte (o regimento interno do Tribunal), Regulamento da Procuradoria (regimento interno de funcionamento da Promotoria), e o Acordo sobre privilégios e impunidades”, esclareceu o professor.

 

Entre outros tópicos da atualidade do Direito Penal Internacional, Marcos Zilli teceu considerações sobre a prática do terrorismo.  “A figura do terrorismo ainda é considerada um crime transnacional; não há ainda um consenso internacional sobre a definição que venha a ser terrorismo, muito embora, na comunidade científica internacional, cada vez mais esteja sendo evitada a expressão “terrorismo”, preferindo-se a expressão “atos terroristas”, porque a ideia de terrorismo conecta-se com a ideia de movimento, e esta é uma ideia muito sensível, que pode levar, numa leitura política, à criminalização de determinados movimentos legítimos de resistência”, pontuou.

 

ES (texto)


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