Violência doméstica é discutida no curso para vitaliciamento de magistrados

A juíza Tatiane Moreira Lima discorreu sobre o tema “Violência doméstica”, no último dia 4, para os juízes do 184º Concurso de Ingresso, que participam da fase de aulas a distância da 2ª Etapa do Curso de Formação Inicial – Vitaliciamento da EPM. O evento teve a participação do juiz Luís Felipe Ferrari Bedendi, integrante da coordenação do curso.

 

Titular da Vara da Região Oeste de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, Tatiane Moreira explicou a natureza e o ciclo dessa modalidade específica da violência, falou dos fundamentos da legislação de proteção às suas vítimas e comentou os casos mais complexos da aplicação da lei no cotidiano da jurisdição criminal. 

 

De acordo com a palestrante, a violência doméstica contra a mulher é um fenômeno multicausal: “não se tem uma causa específica para sua ocorrência, e diz-se que é perversamente democrática, porque atinge todas as classes sociais. Por isso é muito importante que o juiz tenha a sensibilidade para entender que não se trata de simples briga de casal e esteja atento a essas questões”.

 

Ela explicou o ciclo da violência, que se inicia e reproduz no âmbito doméstico, mas também se desdobra na chamada violência institucional, vitimando a mulher que busca ajuda, seja na delegacia, no Ministério Público ou no Poder Judiciário. “Eu percebi – e isso foi para mim um divisor de águas – que a gente acaba a audiência, pega as nossas coisas, vai para a casa e fecha a porta. Mas a vítima, muitas vezes, volta para casa junto com o agressor. Então a gente tem que se colocar no lugar dela, do agressor e, às vezes, ter um pouco de criatividade e contar com a sorte para resolver determinados casos”.

 

A expositora apresentou os números da violência doméstica contra a mulher. De acordo com o Mapa da Violência Doméstica no Brasil, de 2015, uma mulher é agredida a cada 15 segundos; 13 são mortas por dia; mais de 50% foram assassinadas por parceiros íntimos; 19% alegaram, espontaneamente, que já sofreram algum tipo de violência doméstica, sendo que este número subiu para 43% quando a pergunta foi acompanhada de uma lista contendo as formas de violência (agressão física, ameaça, cerceamento de liberdade, assédio sexual e violência psicológica).

 

Tatiane Moreira afirmou que a violência doméstica não é só contra a mulher, mas também contra a família. Ela lembrou, para ilustrar, que das 52 mil denúncias recebidas pelo Disk Denúncia em 2014, 80% das mulheres apanhavam dos parceiros semanalmente e, desse percentual, 64% das agressões eram presenciadas pelos filhos. Em 2015, o percentual de mulheres agredidas subiu para 76 mil. Ela comentou a cultura da violência desencadeadora desse processo e da necessidade de acabar com ela. “A criança que cresce vendo a violência doméstica ser praticada, vai repetir essa forma de comportamento no futuro”, asseverou.

 

Adiante, ela falou da noção de gênero como uma construção histórico-cultural, e lembrou que a vítima de violência de gênero – entendida conceitualmente como aquela praticada com fundamento e em favor da superioridade masculina, em detrimento da inferioridade feminina –, necessita de proteção específica. “As peculiaridades dessa forma de violência, a postura da vítima, a dificuldade de obtenção de provas e a costumeira retratação da ofendida (muitas vezes para justificar a conduta agressiva do parceiro), exigem que o juiz transcenda os moldes tradicionais para que se possa proteger as vítimas”, observou.

 

Lei Maria da Penha

 

Em prosseguimento, a palestrante discorreu sobre a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), que criou mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e para protegê-la. De acordo com a normativa, a violência contra a mulher deixou de ser tratada como um crime de menor potencial ofensivo, “um entendimento que não levava em conta o ciclo da violência, no qual a mulher está inserida, entendendo-o como um fenômeno isolado”. A lei abrange a violência física e sexual, a violência psicológica, a violência patrimonial e o assédio moral. A lei também acaba com as penas pagas em cestas básicas

 

O dispositivo ganhou este nome em homenagem à biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes, que lutou por vinte anos para ver seu agressor preso. Sua história é bastante conhecida no meio jurídico. Casada com o professor universitário Marco Antonio Herredia Viveros, ela sofreu a primeira tentativa de assassinato em 1983, quando levou um tiro nas costas enquanto dormia. Viveros foi encontrado na cozinha, gritando por socorro, alegando que tinham sido atacados por assaltantes. Desta primeira tentativa, Maria da Penha saiu paraplégica. A segunda tentativa de homicídio aconteceu meses depois, quando Viveros tentou enforcar e eletrocutar Maria da Penha no chuveiro. O caso gerou grande repercussão porque quinze anos se passaram até que o agressor cumprisse apenas dois anos de prisão. O processo foi levado aos organismos internacionais e resultou numa condenação da OEA ao Brasil para o estabelecimento de políticas de criação de leis para melhor prevenção, proteção da mulher em situação de violência doméstica e punição do agressor.

 

Tatiane Moreira sustentou a inaplicabilidade da Lei 9.099/95 – que dispõe sobre penas alternativas no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais – aos casos de violência doméstica contra a mulher. Eu já vi caso em que se aplicou a pena de cesta básica, mas quando saiu da audiência, o agressor falou para a vítima: ‘agora, você vai ter que fazer mais faxina, porque eu tenho que pagar a cesta básica’. Desta forma, a vítima, que tinha sofrido a violência, ainda tinha que trabalhar mais para pagar a pena do agressor”.

 

Ela falou sobre a via crucis da mulher até a reivindicação de seu direito à integridade, à honra, e à condenação do agressor, “já no limite da  suportabilidade e, em geral, quando a agressão passa a estender-se aos filhos do casal, quando cria coragem ou força para denunciar”. De acordo com a palestrante, apenas 5% das mulheres denunciam a primeira agressão e, em média, levam oito anos para fazê-lo. “Quando chegam à delegacia, já foram vítimas de muitas agressões. Muitas vezes, quando está diante de um juiz, já percorreu um imenso caminho, e se nós, autoridades, a tratarmos com descaso, ela não se sentirá acolhida ou confortável para, eventualmente, denunciar novas agressões; muitas vezes, a gente pode até perder essa vítima”, observou.

 

A juíza recordou que a Lei Maria da Penha prevê a criação dos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e que, para o atendimento dessas demandas específicas, já foram criadas em São Paulo sete varas especializadas na capital e três no interior (São José dos Campos, Sorocaba e Gaurulhos). De acordo com a expositora, por não se tratar de um crime comum, o diferencial da prestação jurisdicional nessas varas é o atendimento multidisciplinar, composto por psicólogos e assistentes sociais.

 

Comentou, ainda, casos complexos de aplicação da Lei Maria da Penha. Sustentou que a aplicação não se restringe às agressões do parceiro contra a parceira na relação doméstica. E observou que, tanto o conceito de família quanto o alcance da lei são mais ampliados. Nesse sentido, a família é compreendida como a comunidade de indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou vontade expressa, e a agressão pode dar-se em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independente de coabitação. Igual proteção também é assegurada ao transexual vítima da violência doméstica por ser pessoa juridicamente considerada mulher, e à mulher, nos casos de relação homoafetiva, mas jamais ao homem, ainda que se alegue a vulnerabilidade.

 

A reeducação do agressor

 

Tatiane Moreira falou finalmente, de projetos desenvolvidos em apoio à jurisdição da violência doméstica em São Paulo, como o “Coletivo feminista”, que visa a reeducação de agressores com aulas reflexivas a respeito do machismo e outros fatores deflagradores da violência; e “Patrulha da paz”, que orienta vítimas quanto ao exercício de direitos e promove encaminhamentos à rede de atendimento psicossocial, além dos intercâmbios “Poder Judiciário e saúde” e “Poder Judiciário e delegacia”.

 

“A gente acredita que é só com a mudança de atitude do agressor, empoderamento da vítima e trabalho de prevenção nas escolas, entre outras frentes, que haverá a diminuição dos índices de violência contra a mulher”, concluiu.

 

ES (texto e foto)

 

 

 

 


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