Princípios da dignidade humana e da solidariedade são debatidos no curso de Direito Civil

A professora Maria Cristina De Cicco, docente da Universidade de Camerino (Itália), foi a palestrante da aula do último dia 28 do 3º Curso de especialização em Direito Civil da EPM, dedicada à análise do tema “O princípio da dignidade humana e da solidariedade”. O evento contou com a participação dos desembargadores Carlos Alberto Garbi, coordenador do curso e da área de Direito Civil da Escola, e Luciana Almeida Prado Bresciani, conselheira da EPM.

 

Maria Cristina De Cicco falou inicialmente sobre a estreita relação entre Direito Civil e Direito Constitucional na contemporaneidade, até mesmo abolindo a distinção conceitual entre os dois sistemas: “o Direito Civil contemporâneo nada mais é que o Direito Civil Constitucional, mas criado por outros juristas que pretendem se diferenciar, mas a fundamentação é a mesma”, sustentou. E explicou que esse nexo de contiguidade significa não só a releitura das normas e dos institutos do Direito Civil à luz dos princípios constitucionais, mas também a aplicação direta dos princípios nas relações de Direito Privado.

 

Sob esta ótica, defendeu a aplicação direta dos princípios constitucionais da dignidade humana e da solidariedade, sem necessidade da intermediação de normas ordinárias infraconstitucionais. “Trabalhamos com a unidade, ou seja, ao aplicar a lei, os juízes não necessariamente devem buscar a norma em um determinado setor do Direito, mas na totalidade do ordenamento”, sustentou a expositora.

 

Ela argumentou que a pluralidade de estatutos, como ocorre na legislação brasileira, implica no risco da fragmentação do Direito, e por consequência, numa fragmentação da tutela da pessoa, que não fica mais protegida. “Se o juiz fica preso a um determinado estatuto, pode deixar de tutelar a pessoa na sua globalidade. Então é necessário ter essa visão ampla da unidade do ordenamento, em presença de uma pluralidade de fontes. No momento em que o juiz encontra a norma a ser aplicada e decide o caso, a unidade do ordenamento se concretiza”, observou.

 

A palestrante também afirmou que a reflexão sobre os princípios da dignidade humana e da solidariedade social implica levar em consideração o princípio da democracia, “sem a qual não existe dignidade humana”.  Como prova da assertiva, lembrou que, no período totalitário, a última preocupação era a dignidade humana.

 

“A democracia é fundamental, mas não somente a democracia participativa, a eleição por maioria. O princípio da democracia é um princípio mais amplo, que vai além disso, e que poderíamos chamar de uma ‘democracia decisional’, no sentido de que esse princípio vai conformar todas as instituições e todas as comunidades do ordenamento jurídico (família, escola, associação, partido político, e até as forças armadas)”, ensinou. E aduziu que a discussão da questão da dignidade e da solidariedade, cujas existências estão vinculadas ao princípio da democracia, demandam a discussão da liberdade e da igualdade. “Quando o juiz  for decidir com base na violação da dignidade humana, precisa verificar se esses outros componentes também estão presentes”.

 

Democracia como princípio de manutenção da dignidade na família

 

Para ilustrar a aliança filosófica entre dignidade e democracia, Maria Cristina De Cicco evocou a organização contemporânea da família, referida como “família democrática”. “Ela é resultado de uma evolução que passou do pátrio poder ao poder parental, e hoje significa que todos os participantes são iguais do ponto de vista moral e jurídico”, explicou.

 

De acordo com a expositora, a democracia na família tem a função de alcançar a dignidade de todos os membros, e consiste em um poder decisional ou uma modalidade de convivência, no sentido que todos têm os mesmos direitos, embora subsista uma hierarquia entre os genitores e os filhos. “Alguém tem que tomar uma decisão, mas o importante é que essa decisão não seja arbitrária. A democracia entra no fato de que o menor de idade tem que ser ouvido. Mas não é suficiente ouvi-lo; os genitores têm que levar em consideração as aspirações desse filho, o que não é fácil em caso de conflito, devendo-se recorrer ao juiz”, observou.

 

Sob a ótica da igualdade familiar, ela observou que hoje, a posição da criança e do adolescente na família é muito forte; em algumas situações, até mais forte que a dos genitores, e que isso pode levar a um problema, porque a criança e o adolescente têm uma capacidade de discernimento que é evolutiva, de acordo com o próprio crescimento, mas não têm ainda o amadurecimento necessário para tomar todas as decisões que dizem respeito a ela”.

 

Ainda na esfera jurídica da família, a professora teceu comentários do ponto de vista da efetividade da prática democrática em suas decisões: “para a concretização dos princípios da democracia e do princípio da solidariedade em função da dignidade humana na família é necessário que as pessoas sejam educadas para isso, uma questão de cidadania”.

 

A autonomia do indivíduo em questões pessoais de vida e morte

 

Sob o prisma da autonomia da vontade e da dignidade da pessoa humana, a palestrante comentou casos paradigmáticos à luz do instituto do Direito italiano L’amministratore di sostegno, um sistema que visa proteger de forma ampla a dignidade da pessoa incapaz, de modo a facilitar sua inserção na comunidade e promover sua autonomia na maior medida possível.

 

Ela tratou de aspectos do debate sobre a utilização do instituto para prever e antecipar as decisões de fim de vida, relatando casos concretos julgados pela Justiça italiana. Entre esses casos, lembrou o da jovem Eluana Englaro, de 21 anos, que sofreu um grave acidente automobilístico em 1992 e entrou em estado vegetativo, com uma sobrevida à base de aparelhos. A família da jovem conseguiu a suspensão gradual da alimentação e hidratação de Eluana, em decisão do Tribunal de Cassação em 2007, o que culminaria com sua morte em 2009. A decisão judicial baseou-se na reconstrução da vontade da paciente por meio de provas.

 

“A pretensão é dar a possibilidade da pessoa decidir como quer viver e como quer morrer, em casos em que dependa de maquinário para sobreviver, porque se fala de vida digna, mas também se deve falar de morte digna, mesmo porque, em nosso ordenamento jurídico, não existe o dever de viver. Então a pessoa deve poder decidir sobre a própria vida e sobre o que é a dignidade para a pessoa em relação à vida e à morte”, defendeu a professora.

 

ES (texto e fotos)


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