­­­­­­­­­­588 - Direito Privado e Constituição


EDUARDO BICHIR CASSIS[1] - Advogado 



Sumário
: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 3. Conclusão. 4. Bibliografia. 

Introdução  

Direito é a canalização do dissenso. É chegar numa solução que dê paz à sociedade[2]

Primeiramente, registra-se que o presente estudo não tem a pretensão de esgotar a matéria. Pelo contrário, busca apenas traçar breves apontamentos acerca da intrínseca relação entre o Direito Privado e as normas constitucionais para, ao final, concluir pela importância do Código Civil, único instrumento capaz de dar efetividade aos valores consagrados da Magna Carta de 1988.            

A grande fonte do Direito Privado remonta às bases do Direito Romano. Este, por sua vez, era pragmático, buscando apenas soluções concretas de aplicação direta.            

Durante a Revolução Francesa, os jurisconsultos da época, com base nas diretrizes romanas, compilaram os conhecimentos do Direito Privado existentes e formularam livros estanques, tudo através de uma análise estritamente setorizada. Por essa razão, o Código Napoleônico não continha “Parte Geral”. Havia, portanto, apenas o estudo da exegese, sendo o juiz mera “boca da lei”, por conta da subsunção total da norma ao fato, em interpretação estrita, basicamente gramatical. O sistema francês, portanto, era fechado.           

Os alemães, por sua vez, também partiram do mesmo cabedal do Direito Romano. Porém, os alemães focaram-se na criação de conceitos. Esses conceitos, ao longo do tempo, foram estratificados, permitindo a criação de uma “Teoria Geral” relacionada às obrigações, família, sucessões, direitos reais. Pela visão germânica foi possível perceber certa similitude nos diversos ramos científicos. Isso porque alguns conceitos eram comuns a todos os campos. De onde, então, brotou a semente da “Parte Geral” dos Códigos, com a maior concentração de conceitos básicos para a aplicação em todo direito (e não apenas do Direito Privado).            

A “Parte Geral” é o tronco que fornece a seiva para todos os ramos do Direito, pois o Direito é um só. Germinou no Brasil com Augusto Teixeira de Freitas[3] quando apresentou um esboço de Código Civil que não foi utilizado. Registre-se que, nesse esboço, constou pela primeira vez a “Parte Geral”, sendo anterior ao BGB (Bürgerliches Gesetzbuch) alemão, de 1900. Interessante notar que os três parceiros originais do Brasil no Mercosul adotaram aquele diploma inicial brasileiro.            

Com efeito, o Direito é reflexo da história. Não há Direito que não é história. Logo, o Direito deve se amoldar ao seu tempo. Como ciência, não foi feito para pairar nas alturas, mas para penetrar na sociedade, criando sua própria realidade. Nesse sentido, para o estudo dos princípios, fundamental que eles integrem o sistema jurídico, como ideia matriz e motriz, dando origem e, ao mesmo tempo, movimentando-o, nas lições do prof. Renan Lotufo.            

As relações jurídicas nascem apenas no convívio social através do consenso. As partes criam uma norma, dentro do sistema, para reger suas relações e, assim, por essa normatização também são regidas. Na medida em que criam a norma, as partes são regidas pela mesma. Isso tudo advém da potestade inerente à Autonomia Privada[4], a qual sofre limitação na conformação do sistema jurídico. Isto é, a Autonomia Privada é a potestade atribuída pelo sistema às pessoas para criar normas individuais de Direito Privado, dentro do mesmo sistema jurídico e sem afetar as normas imperativas.            

O Direito Privado mudou pela dignidade do ser humano. O ser humano passou a ser o centro e a ter valor principal. É a chamada despatrimonializacão do Direito Civil. O sistema fechado não mais subsiste, pois os valores se modificam, a sociedade se atualiza e os momentos históricos trazem novidades a toda hora.            

Esses novos valores não podem ficar fora do Direito e devem penetrar no sistema. Os valores de fora alimentam o sistema para que ele funcione de acordo com a sociedade atual, nas lições do Prof. Tércio Sampaio Ferraz Junior[5].            

Valores novos oxigenam o sistema do Direito. Para resolver as lacunas existentes, é preciso buscar fora do sistema jurídico. Como um desses mecanismos que permite a oxigenação do sistema, podemos citar a “cláusula geral”. O Judiciário, portanto, não mais fica restrito à lei positivada. O juiz deixou de ser meramente a “boca da lei”, como queriam os franceses. Passou a ser um dos partícipes na revelação do Direito. O juiz não cria a norma, mas revela o que está no sistema, fazendo claros os valores já consagrados.            

Cumpre observar que a Constituição, de 1988 até os dias atuais, trouxe poucas modificações materiais para a sociedade. As transformações, em sua maioria, cingiram-se aos aspectos estruturais do Estado. O Código Civil, por sua vez, implementou mudanças materiais significativas para o corpo social. Como exemplo, podemos mencionar que o Direito da Personalidade teve origem que não brotou da Constituição, mas do Direito Civil.            

O Direito prima pela ponderação de valores e, sobretudo, pelo equilíbrio para, assim, assegurar a paz social. Todo Estado onde prepondera a segurança há pouca liberdade e, noutra face, onde prevalece a liberdade há pouca segurança (Ralf Dahrendorf).            

A ideia liberal trazida pela Revolução Francesa pretendia derrubar a Constituição, vista como arcabouço regulatório do Estado ditatorial que massacrava os direitos individuais. O Rei sufocava o povo e, contra isso, surgiu a predominância do direito individual. Os indivíduos passaram a ter direitos frente ao Estado.             

O presente estudo visa demonstrar que, apesar das divergentes posições doutrinárias acerca da influência da Constituição no Direito Privado, a aplicação direta dos ditames constitucionais só é possível em caráter excepcional. Ou seja, na absoluta lacuna das normas de Direito civil é que se permite a aplicação direta da Constituição.            

Se a Constituição não o recepciona, o Código Civil perde seu fundamento de validade. E, se recepcionado, o Código Civil deve ser relido à luz da Constituição. A lei tem fundamento de validade e, se ela não esta conforme, não pode produzir efeito. Deve ser relida a lei conforme a Constituição, a qual preconiza a melhor forma de entender a legislação.           

Exemplo disso é o §6º do art. 227 da Magna Carta[6], o qual preceitua a igualdade entre os filhos. Se a Constituição assevera que todos os filhos são iguais em direitos, reflete-se na lei civil que o filho adulterino também dispõe dos mesmos direitos, pois a Constituição predetermina que todos os filhos são iguais. Daí porque a Constituição fez uma releitura no Direito das sucessões, este assegurado pelo Código Civil, pois quem não era herdeiro passou a ser.           

O sistema deve ser operativo para alcançar a sua finalidade. Por isso nasceu a chamada a “constitucionalização” do Direito civil. As Constituições, após a Segunda Grande Guerra Mundial, passaram a ficar mais civilizadas, preocupando-se com a dignidade da pessoa humana. O Direito civil passou a ser incorporado pelas Constituições democráticas.           

Com efeito, o Direito deve buscar o equilíbrio do individual com o social. O individual deve sobreviver, mas dentro da sociedade. A dignidade da pessoa humana deve ser sopesada dentro do corpo social. A Constituição é um sistema e não uma colcha de retalhos. Por isso os problemas sociais devem ser resolvidos pela Constituição, porém à luz dos valores que estão para fora dela e nela contidos.           

Por isso, o Direito Civil Constitucional não é a aplicação direta da Constituição ao caso concreto. Isso porque o Código Civil deve ser aplicado à luz da Constituição, pois os valores constitucionais podem sofrer alterações pela própria lei, conforme o momento histórico vigente.           

Ingênuo seria pensar que há Código perfeito. Não há lei perfeita. Quem conserta as imperfeições legais é o interprete da lei, respeitando os valores da sociedade num determinado momento. Daí porque necessário compreender os valores sociais no contexto em que estão inseridos. Importante instrumento facultado ao intérprete são as cláusulas gerais previstas no Código Civil.           

Há uma simbiose entre Direito Constitucional e Direito Civil. No fundo, ao analisar a ligação existente, chega-se a conclusão de que o Direito é único, devendo servir para promoção da justiça e da paz social.  

Desenvolvimento 

A ideia principal do presente estudo é trazida pelo jurista Claus-Wilhelm Canaris[7]. Renomado autor estuda a influência dos direitos fundamentais sobre o comportamento dos sujeitos de direito privado. A análise tem por ponto central saber se e como os sujeitos de direito privado vinculam-se aos direitos fundamentais (“eficácia dos direitos fundamentais em relação a terceiros”; “drittwirkung”). Para tanto, o consagrado jurista propõe três questionamentos, respondendo-os precisamente.                       

O primeiro dos questionamentos indaga quem é destinatário dos direitos fundamentais, apenas o Estado e seus órgãos ou os sujeitos de direito privado? Em resposta à formulação, o jurista apresenta:  

(...) como ‘primeiro resultado parcial’, pode portanto reter-se: destinatários das normas de direito fundamentais são, em princípio, apenas o Estado e seus órgãos, mas não os sujeitos de direito privado[8].                        

Em seguida, o autor traz nova indagação: o objeto de controle segundo os direitos fundamentais é o comportamento de quem, o comportamento de um órgão de Estado ou de um sujeito de direito privado? Em resposta, apresenta que: 

(...) da conclusão ora apontada resulta, sem mais, o segundo resultado parcial, o objeto de controle segundo os direitos fundamentais são, em princípio, apenas as regulações e actos estatais, isto é, sobretudo leis e decisões judiciais, mas não também actos de sujeitos de direito privado, ou seja, e sobretudo, negócios jurídicos e actos ilícitos[9].                       

Por fim, indaga em que função são aplicados os direitos fundamentais, como proibições de intervenção ou como imperativos de tutela? Assevera que: 

(...) designadamente, mantém-se, por um lado, a posição de que apenas o Estado é destinatário dos direitos fundamentais, já que é também ‘sobre ele’ que recai a obrigação de os proteger. Por outro lado, resulta clara a razão pela qual outros cidadãos são também atingidos e os direitos fundamentais produzem também – de certa forma por uma via indirecta – efeitos em relação a eles: justamente porque no campo jurídico-privado o Estado, ou a ordem jurídica, estão, em princípio, vinculados a proteger um cidadão perante o outro[10] .                        

Em 1873, a Constituição alemã foi emendada de modo a permitir a promulgação de um Código Civil comum que substituiria todas as leis civis em vigor nos Estados. O Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch ou BGB) entrou em vigor em 1º de janeiro de 1900, resultado de um imenso esforço de codificação que criou uma das obras legais mais impressionantes do mundo, ainda em vigor, com modificações.                       

O Código alemão originou-se do pensamento katiano quanto à sistematização, visando obter uma unidade nacional face à multiplicidade de ordenamentos regionais até então existentes, motivo pelo qual sua entrada em vigor contribuiu para a unificação da Alemanha.                        

É sabido que o ilustre jurista em comento é o principal autor da reforma do Código Civil alemão, conhecedor de princípios filosóficos e, ainda, expoente em Direito Constitucional, isto é, trata-se de um autor com notável conhecimento de filosofia, Constituição e direito privado que, quando implementou a reforma do BGB, aplicou a consolidação da jurisprudência à luz da Constituição.                        

Na época havia uma Lei Fundamental imposta, ou seja, não concretizada pelo legislador constituinte. Mencionada Lei Fundamental serviu de base para a Declaração dos Direitos Fundamentais. Canaris viveu a ordem constitucional ditatorial, isto é, um Estado de falta de objetivos e perda de identidade provocado pelas intensas transformações ocorrentes na sociedade (anomia). Não se tinha leis ou regras claras, as quais começaram a surgir pela dominação.                       

Esse momento refletiu na ânsia pela liberdade. Posteriormente, com a queda do muro de Berlim, permaneceu apenas a Lei Fundamental. Diante disso, veio o grande desafio: como interpretar esse cenário frente ao direito privado?                        

A Alemanha teve sua formação social constituída por diferentes blocos comunitários. Os alemães construíram um sistema com base no Direito Romano e um Código Civil que serviu de base para o desenvolvimento de outros. Trouxe a Parte Geral como fonte (regras especiais) para dar sistema e organicidade, tudo com supedâneo na Teoria Geral de Direito tradicional (conceitos fundamentais).

Canaris trabalha com exemplos que ocorrem no Direito de Família (personalidade). Assim, é possível citar o jovem que pleiteia o reconhecimento de sua origem biológica, almejando o reconhecimento da personalidade. Pela rigidez das regras existentes, essa possibilidade não era permitida. Daí porque criou-se um vácuo no sistema e uma necessidade de resolução concreta.

A solução é trazida diretamente da Lei Fundamental. Porém, não havia regra que a consagrasse. Com efeito, o escopo maior foi encontrado na Dignidade da Pessoa Humana. Deu-se uma abertura no sistema normativo. A ideia era buscar fundamento nas leis mais próximas e, após, em normas superiores, tudo visando a resolução do caso concreto.

Conforme os ensinamentos do Professor Dr. Renan Lotufo[11]: “O Direito não foi feito para pairar no espaço”.

Significa dizer que, quanto mais concreto o conjunto normativo, mais fácil a aplicação da norma. Daí porque o sistema indutivo é extremamente perigoso, pois se a sustentação da norma cinge-se apenas ao princípio assegurado pela Lei Maior, o intérprete poderá adequá-lo para qualquer situação, o que poderá gerar abertura aos regimes ditatoriais. A aplicação direta dos princípios à relações de direito privado, portanto, é extremamente perigosa.

A existência da cláusula geral permite a interpretação. Todavia, dentro de certos contornos e limites, dos quais o aplicador da lei (intérprete) não pode fugir. Essa a ideia de Canaris. Significa dizer que, se a aplicação dos princípios tivesse que ser feita de maneira direta, de uma vez só, não seria um sistema de normas. Canaris não nega a tópica, ressalvando sua aplicação eventual. Isso porque a interpretação do direito deve ser sistemática, sob pena de negativa à unidade dos valores. Em outras palavras, o direito deve trabalhar com valores postos no ápice do sistema.

Em conclusão, ensina o ilustre jurista que:  

(...) de qualquer modo, mesmo onde os direitos fundamentais não sejam aplicáveis na sua especifica dimensão jurídico-constitucional, e onde não esteja em causa uma violação das proibições do excesso ou de insuficiência, podem ser relevantes para a interpretação do direito privado, e, em especial, para a concretização, das suas cláusulas gerais. Pois neste caso os direitos fundamentais sempre podem produzir efeitos como princípios gerais de direito com nível ‘infraconstitucional’ – tal como também outros princípios gerais de direito (e com a consequência de que a sua falta de consideração não poderá, então, de forma alguma ser impugnada com sucesso mediante uma queixa constitucional)[12].   

A partir desse momento, esse sintético estudo passa a tratar de ensinamentos trazidos por outros autores que, de certa forma, também analisaram a relação entre o Direito Privado e a Constituição. Mais uma vez, não se tem a pretensão de esgotar o tema, mas apenas colacionar algumas manifestações pontuais.

Karl Larenz[13] trata da importância da Lei Fundamental para a interpretação e desenvolvimento do Direito privado. Assevera que:  

La Ley Fundamental no se ha limitado a regular la organización del Estado Federal, sino que contiene, ante todo en la parte relativa a los derechos fundamentales y también en otras secciones – especialmente la que trata de la jurisprudencia - , ‘principios jurídicos generales’, que vinculan a los tribunales como Derecho de vigencia inmediata.  

E continua: 

(...) originariamente, los derechos fundamentales han sido concebidos para asegurar al individuo un ámbito de libertad frente a la prepotencia del  Estado. Allí donde este ámbito de libertad es puesto actualmente en peligro por otros grupos o poderes, el ordenamiento jurídico ha de protegerle también frente a ellos. No obstante, esto solo puede efectuarse con los medios y en las formas de pensamiento del Derecho privado, siempre que se trate de la utilización de situaciones de poder y de facultades jurídico privadas[14].  

Flórez-Valdés[15], ao confrontar a Constituição e o Direito civil, ensina:

Nuestra Constitución es, además, una norma jurídica que, al fundamentarse en el ‘principio de limitación del poder’ reconoce u otorga verdaderos derechos al ciudadano frente a la organización estatal.  

Ao final, conclui que:  

(...) podemos adelantar ya, sin perjuicio de volver más detenidamente sobre el tema, al justificar su denominación, que el Derecho civil constitucional no podrá integrarse en el ámbito del derecho constitucional, porque el criterio imperante para definir este – al igual que para la delimitación de las demás ramas del Derecho – no es un criterio formal, sino material. Y, y alo hemos indicado, el derecho civil constitucional Estados, materialmente, Derecho civil. 

Attilio Guarneri[16], em 1974, asseverou que:  

Invalidare un contratto  per contrarietà alla Costituzione o al piano attraverso il ‘medio logico’ della violazione dell’ordine pubblico significa esercitare quelle scelte politiche che il  legislatore non ha compiuto. La regola di ordine pubblico sarebbe in tal modo dipendente dalla variabile al tempo stesso sincronica e diacronica delle preferenze dei vari interpreti per questo o quel suggeritore di modelli politico-giuridici.  

Pietro Perlingiere[17] ensina que:  

A tendência à cristalização dos conceitos e dos institutos jurídicos é sintoma de uma orientação contraditória, mediante a qual o provincianismo tende a se tornar valor universal. Isso pode ser evitado potencializando o estudo da comparação e da historia do direito, sem limites de tempo e de lugar. (...) Subsistem para os juristas amplos espaços de atividade, de compromisso e de responsabilidade, que subtraem terreno ao desespero de só pensar e de só fazer e que permitem indicar às jovens gerações de estudiosos e de operadores, finalidades positivas a serem realizadas com serenidade, com o entusiasmo necessário, com os pés bem plantados no terreno do conhecimento temporariamente adquiridos, mas também com os olhos bem abertos para os novos horizontes de uma sociedade tecnológica que saiba ter respeito pelo homem e pelas suas exigências primarias e contribuindo, assim, para favorecer a passagem crucial da Lei ao Direito

Maria Celina Bodin de Moraes[18], ao tratar da Constitucionalização do Direito Civil, afirma:  

(...) por que não aplicar diretamente a norma constitucional à relações entre privados? A verdade é que não existem argumentos lógico-jurídicos que contrastem a aplicação direta e a incuidência imediata da normativa constitucional. Em conclusão, a norma constitucional pode, ela própria, quando não existirem normas ordinárias que disciplinem o caso concreto, ser a fonte da disciplina jurídica de uma relação de direito civil. 

Gustavo Tepedino[19], analisando as premissas metodológicas para a constitucionalização do Direito civil, conclui que: 

(...) a intervenção direta do Estado nas relações de direito privado, por outro lado, não significa um agigantamento do direito público em detrimento do direito civil que, dessa forma, perderia espaço, como temem alguns. Muito ao contrário, a perspectiva de interpretação civil-constitucional  permite que seja revigorados os institutos de direito civil, muitos deles defasados da realidade contemporânea e por isso mesmo relegados ao esquecimento e à ineficácia, repotencializando-os, de molde a torná-los compatíveis com as demandas sociais e econômicas da sociedade atual

Paulo Luiz Netto Lobo[20], ao tratar da constitucionalização do Direito civil conclui que: 

Quando a legislação civil for claramente incompatível com os princípios e regras constitucionais, deve ser considerada revogada, se anterior à Constituição, ou inconstitucional, se posterior à ela. Quando for possível o aproveitamento, observar-se-á a interpretação conforme a Constituição. Em nenhuma hipótese, deverá ser adotada a disfarçada resistência conservadora, na conduta freqüente de ler a Constituição a partir do Código Civil. 

Judith Martins-Costa[21] analisa os direitos fundamentais confrontando-os com a opção culturalista do Código Civil. Ao tratar da discussão se os particulares podem recorrer diretamente aos Direitos Fundamentais nas suas relações mútuas, aduz que, na obra em comento:  

(...) esse debate não será aqui referido senão de maneira indireta. É que minha proposição diz respeito não ao ‘se’ da eficácia dos Direitos Fundamentais, mas às virtualidades do novo Código Civil para atuar no papel de uma ‘estrutura receptora dos direitos fundamentais’, difundindo-os nas relações interprivadas e contribuindo com a construção de uma nova noção de ‘pessoa humana’”.  E continua: “a concepção dos modelos jurídicos de Reale, conduz, no plano operativo, ao estabelecimento de ligações intra-sistemática com os Direitos Fundamentais”. Daí porque, “se adotarmos a perspectiva teórica traçada pelo Código, a saber: se conectarmos a cláusula geral do artigo 21, que delineia um modelo aberto de tutela, com a Constituição, o Código de Processo Civil e, eventualmente, leis especiais; se tivermos presente que sobrepaira, a quaisquer elencos legislativos que se possa fazer em matéria de Direito da Personalidade, o reconhecimento constitucional da dignidade da pessoa humana; então teremos, como necessária conseqüência, a conclusão de que o ordenamento não está cerrado na tutela de certas situações típicas, mas permite estender a tutela da Personalidade a situações atípicas que, no momento, talvez nem possamos imaginar, tamanha a variedade e a grandeza das lesões à personalidade possibilitadas pelo poder econômico, pela razão instrumental e pela tecnociência”. Em conclusão “já por essas indicações se pode perceber que o novo Código Civil brasileiro está a requerer, de seus intérpretes, a compreensão da nova metodologia que enseja, embasada em uma diversa pré-compreensão do fenômeno jurídico. Essa pré-compreensão não é dada só por dados fáticos, mas por ‘criterios de valor’ que direcionam o exame do fato segundo a ‘etica da situação’. Muito claramente sinalizados no novo Código, penso que tais critérios indicam uma nova ideologia, abeberada, diretamente, nos Direitos Fundamentais.  

Clóvis Beviláqua[22], inovadoramente, referiu-se à Constituição de 1934 e suas repercussões sobre o Código Civil de 1916, sendo ele, juntamente com Teixeira de Freitas, um precursor dos Códigos orgânicos. Ressalta-se que o jurista sempre esteve a frente de seu tempo, admitindo os efeitos diretos e imediatos da Constituição como norma jurídica, ao asseverar que:  

(...) é certo que todo o direito de um povo dado se move, necessariamente, dentro do circulo da sua organização política. As Constituições são fontes primarias do direito positivo. Aliás, como todo direito positivo, expressão embora da vontade social preponderante, não encerra todo o complexo jurídico elaborado pela vida commum. As suas theses se dilatam ou flexionam dentro do seu systema legislativo, para se ajustar às relações humana, de verdade indefinida

Renan Lotufo[23], com maestria, preconiza que:  

(...) só com o desenvolvimento dos estudos de Teoria Geral do Direito e do aprofundamento dos estudos de Lógica Jurídica e de Filosofia do Direito é que se passou a ter uma visão mais ampla do Direito Privado. Os próprios Direitos individuais, nascidos na Constituição americana e na francesa, com versões distintas, decorrentes de filosofias, formações culturais e valores éticos diferentes, impregnaram o mundo, mas só após a Segunda Grande Guerra é que ganharam a generalização constitucional e preponderância no convívio internacional.. Decorrência disso foi que as Constituições passaram a ter um conteúdo mais amplo, desvinculando-se da mera estruturação do Estado, o que levou a uma visão diferente do papel da Constituição. Hoje, no mundo dos sistema jurídicos legislados, as Constituições passaram a ter significado mais relevante e eficácia muito mais ampla

Carmem Lucia Silveira Ramos[24], tratando da constitucionalização do Direito privado em vista de uma sociedade sem fronteiras, leciona que:

É necessário reconhecer, no entanto, que as disposições inseridas na carta constitucional alteraram qualitativamente o conteúdo das categorias abordadas, num movimento de ruptura, buscando atender às aspirações da sociedade brasileira no limiar do novo século. Assim, ao recepcionar-se, na Constituição Federal, temas que compreendiam, na dicotomia tradicional, o estatuto privado, provocou-se transformações fundamentais do sistema  de direito civil clássico: na propriedade (não mais vista como um direito individual, de característica absoluta, mas pluralizada e vinculada à sua função social); na família (que, antes hierarquizada, passa a ser igualitária no seu plano interno, e, ademais, deixa de ter o perfil artificial constante no texto codificado, que via como sua fonte única o casamento, tornando-s e plural quanto à sua origem) e nas relações contratuais (onde foram previstas intervenções voltadas para o interesse de categorias especificas, como o consumidor,  e inseriu-se a preocupação com a justiça distributiva). Esta publicização do direito regulador das relações privadas, e a concomitante privatização das normas aplicáveis à atividade do Estado, tornou menos nítida,  na ordem da ótica jurídica, a distinção entre direito público e direito privado, sendo fenômeno reconhecido, como regra, nos sistemas jurídicos romanistas atuais

Finalizando, conclui:  

Assim, embora se mantenha, como princípio, um direito centrado no homem, construído segundo o imaginário racionalista-liberal, estabelece-se restrições e limites, voltados para a preservação dos interesses coletivos, bem como para o desenvolvimento e preservação da dignidade do cidadão, ausentes no sistema clássico do direito civil, consolidado no Código de 1916. Neste sentido, a preocupação com o renascer ad codificação, ainda que com uma roupagem modernizada, visualizada num novo texto, na medida em que seja vista como um retorno ao direito voltado para os interesses privados, centrados no individuo, em oposição aos interesses sociais, ordenado num sistema que se pretenda completo, situa-se na contramão da historia, pela tendência à superação da dicotomia direito público-direito privado, através da constitucionalização dos institutos básicos do direito civil, a serem regulamentados por estatutos próprios, presumivelmente mais eficazes no trato destes temas, por sua especialização[25]

Fernando Whitaker da Cunha[26], vislumbrando o direito civil como direito dos cidadãos, titulares do direito frente ao Estado, ensina que: 

(...) nesse enfoque, não existe contraposição entre o privado e o público, na medida em que o próprio direto civil faz parte de um ordenamento unitário (deve-se assinalar que a rotulada publicização do ordenamento civil não se confunde com a real natureza dele, sem que ele deixe de ser plural e complexo, nas palavras de JUNQUEIRA DE AZEVEDO)

Ricardo Luis Lorenzetti[27], analisando as normas fundamentais de direito privado, constata que: 

(...) o conteúdo civil das normas constitucionais deve ser delimitado em função do conteúdo material, estando constituído por aquelas regulamentações relativas à pessoa, a sua dimensão familiar e patrimonial, às relações jurídicas privadas gerais. A este critério material, deve ser adicionado outro de índole formal, derivado do caráter de norma fundamental que tem a Carta Magna, e, por isto, trata-se de normas destinadas a fixar as bases mais comuns e abstratas das relações civis

Em conclusão, afirma que:  

A Constituição é fonte de regras de Direito Privado que têm uma importância fundamental, já que condicionam o legislador, o juiz, e muitas delas são invocáveis pelas partes. Podem ter uma eficácia direta ou ser de gozo indireto[28].  

Roberto Rosas[29], analisando a inserção de normas de Direito civil na Constituição, ensina que:  

A Constituição brasileira tem inúmeras normas influenciadoras ou correlatas com as normas de Direito Civil. Tal circunstância exercita o mundo jurídico no momento da discussão (incrementada) do projeto de Código Civil”. Nessa linha, indaga: “Deveria a Constituição inserir normas de Direito Civil? As cartas do século passado, e aquelas fortes no modelo americano, não se interessam por regras econômicas e sociais. Com a Constituição de Weimar (1919) e a Constituição mexicana de 1917, houve a transição para o estado social de Direito. A Carta de Weimar tratou especificamente dos direitos fundamentais dirigindo-os ao individuo, à vida social, e à vida econômica. Destaque-se na memória que essa Constituição alemã tratou do casamento como fundamento da vida familiar (art. 119), e a igualdade dos dois sexos, a igualdade dos filhos (art. 121). Essas influencias entraram no Brasil na Carta de 1934, e ficaram, cada vez mais intensas, até a Constituição vigente. Acertou o Constituinte? A resposta deve ser dada partindo-se de uma carta sintética ou não. Como o processo constituinte (1988) dirigiu-se a uma abertura, com a inserção liberal de normas das mais variadas espécies, responde-se, até aqui, como salutar a inserção. Será importante, em futuro, a separação das normas principiológicas, e portanto, dispensáveis de inserção, daquelas normas fundamentais necessárias com a inserção

Celso Lafer[30], por sua vez, ensina que:  

(...) a expansão axiológica do Direito é um dos objetivos dos princípios gerais que permeiam as Constituições contemporâneas, inclusive a Constituição do Brasil de 1988, que assinala, no plano jurídico, a passagem política do regime autoritário-militar para a democracia. Por esta razão, a Constituição  brasileira de 1988, como Constituição programática, não se limitou a distribuir competências e garantir direitos. Caracteriza-se pela substantiva incorporação de princípios gerais, voltados para indicar um sentido de direção que a Constituição busca imprimir à sociedade brasileira

Luiz Edson Fachin[31], propõe o estudo da relação entre Direito Privado e Direitos Fundamentais em uma perspectiva que leve em consideração os direitos constitucionalmente tutelados, bem como uma dimensão material que os antecede e lhes dá fundamento no Estado Social de Direito. Ensina o jurista que:  

A estrutura da codificação produz e mantém um estatuto da exclusão, que pode dificultar a efetivação dos direitos fundamentais, tal como contemporaneamente concebidos, no que tange às relações interprivadas.  

Em continuidade, assevera: 

O reconhecimento da possibilidade de os direitos fundamentais operarem sua eficácia nas relações interprivadas é, talvez, o cerne da denominada constitucionalização do Direito Civil.  

Dai porque conclui:  

O que se deve é examinar as possibilidades concretas de o Direito Civil atender a uma racionalidade emancipatória da pessoa humana que não se esgote no texto positivado, mas que permita, na porosidade de um sistema aberto, proteger o sujeito de necessidades em suas relações concretas, independente da existência de modelos jurídicos

Por fim, após a exposição sumária de alguns doutrinadores e da análise do direito comparado, mister trazer à baila as lições preconizadas pelo Professor Dr. Renan Lotufo, tiradas do artigo “Da oportunidade da Codificação Civil e a Constituição[32], as quais indicam, de forma precisa, a confusão estabelecida na doutrina e as justificativas que embasam a necessária existência da codificação civil pátria, em que pese a reconhecida iluminação constitucional.

O artigo, publicado em 2003, tem como pressuposto indagar se é viável ter um novo Código Civil diante da evolução do mundo do Direito, em vista das aspirações que sinalizam pela descodificação, face à época dos microssistemas.

Sustentam que não há espaço para codificações os professores Luiz Edson Fachin, Gustavo Tepedino e Antonio Junqueira de Azevedo, reportando suas críticas ao estudo do autor italiano Natalino Irti. A obra deste autor, escrita em 1975, conclui pelo encerramento da codificação, pois o Direito Civil passou a ter como centro a Constituição.

Todavia, necessário contextualizar a realidade vivida por Natalino Irti e o momento histórico que marcou a tese por ele consagrada.

Natalino Irti examinou o direito positivo italiano, isto é, aquele posto pelo Código Civil de 1942 (fascista, voltado para a produtividade e sem qualquer referência ao valor fundamental do ser humano) a Constituição de 1947 (democrática, oriunda das transformações sociais advindas após a Segunda Grande Guerra, consagrando a dignidade do ser humano). Notório, portanto, o descompasso entre os diplomas, cabendo à doutrina trabalhar a recepção do Código Civil mediante a releitura sob o prisma constitucional.

É sabido que o Código Civil de 1916, projetado por Clóvis Beviláqua, teve influência cultural francesa[33], predominante no Brasil e no mundo do Direito Privado. A doutrina brasileira, influenciada pela francesa, sempre trouxe o Código Civil como o centro do ordenamento jurídico, fazendo crer que o Diploma Civil tivesse mais importância que a própria Constituição.

Diante dessa exegese, a qual também impregnou a cultura jurídica italiana, como aplicar um Código Civil fascista num momento constitucional democrático? Evidente, portanto, a necessidade de alteração no sentido de interpretação do Código Civil, sem que houvesse a necessidade de mudança naquilo que estava escrito no ordenamento jurídico. O Código Civil passou a ser lido através da Constituição. Nas palavras do Professor Renan Lotufo:  

A Constituição, então, é o foco de iluminação, é quem informa e dá os valores ao Direito Civil, o que fez com que todo o Direito Privado Italiano progredisse, com novas concepções que se elevaram ao texto maior daquele país[34].  

Essa mudança de paradigma adveio da redemocratização mundial gerada pela Segunda Grande Guerra e não ocorreu apenas na Europa. Trouxe, em si, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, regando os valores nas raízes mais profundas do Direito Privado. Todavia, os países continuaram tendo Códigos com textos anteriores a remodelação trazida pelas Constituições democráticas, exigindo, portanto, uma leitura diferenciada do Direito Privado. Algumas matérias ascenderam ao nível constitucional. O estudo desse descompasso passou a ser chamado[35] de Direito Civil Constitucional, tendo como centro não mais o Diploma Civil, mas a Constituição.

A partir dessas premissas, Natalino Irti sustenta sua pretensão de plena descodificação.

A doutrina brasileira, em sua maioria, continuou pregando o Código Civil como centro do sistema, sustentando que a Constituição não havia revogado o Diploma Civil. Ensina o Dr. Renan Lotufo:  

Sem perceberem as mudanças de concepção sociopolítica, permaneceram como se as normas deste Código sobrepairassem sobre a Constituição, numa visão totalmente incongruente com a própria teoria geral do direito, que se não fala em revogação da lei ordinária pela constitucional, fala claramente na retirada do fundamento de validade[36].

Com a promulgação da Constituição de 1988, deu-se um choque de perplexidade na doutrina e na jurisprudência, pois a Magna Carta passou a disciplinar diretamente algumas matérias de Direito Privado, até então, exclusivamente tratadas em lei ordinária. Reconhece o autor estudado, sem arrodeios, que o texto Constitucional é o facho e a fonte de iluminação do sistema jurídico, de onde advêm os valores fundamentais.

Natalino Irti, por sua vez, observou anteriormente que descodificação decorre do surgimento de microssistemas, isto é, leis especiais que passaram a surgir e ganhar importância e significado, passando a ser permanentes e com princípios próprios. Sob essa visão, com a Constituição de 1988, muitos autores sustentaram a necessidade de descodificação, dizendo que o ordenamento deveria ser polissêmico (e não central), sendo a função do Código meramente residual, posto que o mais significativo seria delimitado nos microssistemas. Essa a colocação do autor italiano, acolhida pela doutrina que se antepôs ao novo Código.

Não se discute que o Código Civil deixou de ser o centro do ordenamento jurídico, pois a Constituição passou a ser o foco de informação maior. Todavia, não se pode deixar de lado que o Código Civil também tem uma função participativa, intermediária entre a Constituição e os microssistemas. Mister observar que as regras gerais nem sempre são reguladas por leis especiais, as quais, em geral, se amparam nos Códigos para regular situações especificas.

Essa a posição sustentada pelo Professor Renan Lotufo, também agasalhada pelo Professor Christian Von Bar (coordenador dos estudos para a criação do Código Civil europeu. Com maestria, ensina o doutrinador pátrio: 

Estamos diante de um Código, que na sua redação final, ainda que longe da perfeição, não quer ser uma Constituição, não quer ser o centro, e sim ser um corpo de normas com cláusulas gerais e abertas para servir e viabilizar a atuação de todo o Direito Privado[37].  

Certo é que o Código Civil relativiza o individualismo trazendo novos valores e, com isso, dando margem a uma leitura do Direito Civil à luz dos preceitos elevados à Carta Maior, tendo plena importância no cotidiano do cidadão brasileiro como mecanismo necessário à atuação dos dispositivos genéricos do princípios e valores fundantes, efetivando os valores constitucionais. Isto é:  

Não há como negar a importância do Código Civil na vida do cidadão comum, pois só ele, na condição de lei ordinária, será capaz de dar efetividade às regras consubstanciadas na Constituição Democrática[38]

Dai porque as conclusões de Natalino Irti perdem o objeto, pois desenvolvidas numa época com circunstâncias legislativas totalmente adversas da atualidade.

A existência dos microssistemas não impõe a supressão do Código Civil, mas a sua compatibilização e harmonização. O Diploma Civil é de fundamental importância para a vida do cidadão, pois regra os conceitos primordiais das relações jurídicas. É o direito básico da civilização. Ou seja:  

O novo Código procura, com este contrapeso de valores, dar efetividade às normas constitucionais, que propugnam, em última análise, a dignidade do ser humano. Há, no Código, disposições que elevam este ideal ao cume do Direito Privado brasileiro[39] 

Em complementação, observa o Professor Renan Lotufo que o surgimento do Direito Civil Constitucional não inibiu o aparecimento de diversos outros Códigos Civis pelo mundo e nem inibiu os estudos de reforma dos Códigos tradicionais. Conclui a exposição de seus pensamentos asseverando:  

Temos, portanto, que o novo Código Civil é um progresso, apesar de parte dos doutrinadores não verem isso como um progresso e acharem que se deve permanecer como está, sob a alegação de que o novo Código não estaria tão moderno quanto desejado. Atualizar o ultrapassado, no mínimo, é evolutivo, e não poderíamos­ perder esta oportunidade de atualização. (...) Portanto, nada será como antes, porque tudo será conforme os ditames da Constituição Federal. Não há qualquer incompatibilidade com as tendências do direito moderno, uma vez que há perfeita compatibilidade com o ideal de melhor distribuição de justiça, e uma melhor colocação do ser humano dentro da sociedade e seu enfoque dentro do ordenamento. Afinal, todos nós temos o direito de sermos dignos e felizes[40]

Conclusão  

Em breves palavras, após explorar a ligação existente entre o Direito Privado e a Constituição sob a ótica da doutrina nacional e comparada, conclui-se pela adoção da expressão Direito Civil Constitucional, posto que o Direito Civil sempre existiu e sempre existirá enquanto houver sociedade, por ser o direito “das gentes”, do cidadão comum. Enquanto houver “gente” haverá a necessidade do Direito Civil, pois esse brota do povo.

Logo, tem-se observado uma constitucionalização de valores condutores das relações privadas, pois o sistema deve ser operativo para alcançar sua finalidade. Para isso nasceu a chamada constitucionalização do Direito Civil. Melhor dizendo: as Constituições passaram a ficar mais civilizadas, pois o Direito Civil começou a ser incorporado pelas mesmas, modificando-as.

Daí porque o Direito Civil Constitucional não é a aplicação direta da Constituição, mas sim a maestria na aplicação do Código Civil à luz da Constituição, pois os valores constitucionais podem sofrer alterações pela própria lei, reflexo de um contexto social.

Nesse sentido, apenas a lei ordinária é capaz de dar efetividade aos valores trazidos pela Constituição Federal e, por isso, a constitucionalização não inibe a produção de normas infraconstitucionais, estas, sim, voláteis e facilmente adaptáveis às necessidades sociais ao longo do tempo.

A incidência da Constituição sobre o Direito Civil é inegável. Porém, as normas constitucionais devem respeitar o sistema jurídico posto, observando, em especial, a Parte Geral do Código Civil.

A aplicação imediata das diretrizes constitucionais deve ser evitada, sob pena de invalidação do sistema jurídico como um todo. O Judiciário deve extrair o que há de melhor no sistema jurídico existente. Por isso, ao juiz deve ser reservada apenas a nobre tarefa da judicância e não a criação de leis pela incidência direta das normas constitucionais.

O Direito não foi feito para pairar no espaço. Quanto mais concreto o conjunto normativo, mais fácil a aplicação da norma. A referência ilimitada aos princípios tende à criação de sistemas ditatoriais, sendo o sistema indutivo extremamente perigoso. O juiz não nasceu para ser legislador, mas para ser interprete. Por isso, a cláusula geral permite a interpretação, mas possibilitando contornos e limites estabelecidos pelo próprio sistema, dos quais o Judiciário não poderá fugir. Essa a idéia de Canaris. A interpretação do Direito há de ser sistemática, sob pena de ofensa à unidade de valores. 

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[1] Mestrando em Direito Civil (PUC/SP). Pós-graduado em Direito Econômico e setores regulados (FGV/SP). Especialista em Direito Público (EPD/SP). Advogado em Brasília e em São Paulo.

[2] LOTUFO, Renan. Em aula expositiva ministrada no dia 26.09.2011 (tema: Direito da Personalidade) aos alunos do Mestrado em Direito Civil, cadeira de “Direito Civil Constitucional”, PUC/SP.

[3] Responsável pela “Consolidação das Leis Civis brasileiras” de 1858, e autor da primeira tentativa de codificação civil do Brasil. Fez o "Esboço de Código Civil" por encomenda do Imperador D. Pedro II, pelo Decreto de 11 de Janeiro de 1859. Foi uma obra com aproximadamente 5.000 (cinco mil) artigos, que apesar de não ter sido diretamente utilizada no Brasil, influenciou os trabalhos posteriores no país, resultando no Código Civil de 1916, de Clóvis Beviláqua, como também influenciando profundamente os códigos do Paraguai, Uruguai, Chile, Nicarágua e, principalmente, da Argentina, ao qual serviu como modelo.

[4] Convém observar que o conceito de Autonomia Privada não se confunde com a idéia de autonomia da vontade, preconizada pelos revolucionários franceses de 1789, ligada à noção de liberdade para fazer tudo o que o indivíduo quisesse, sem qualquer tipo de limitação.

[5] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. “Sistema Jurídico e Teoria Geral dos Sistemas – Aulas ministrada nos dias 12, 14 e 16/03/73, Apostila do “Curso de Extensão Universitária” da Associação dos Advogados de São Paulo”. Em apontamentos de Marco Antônio Striquer Soares na REVISTA JURÍDICA da UniFil, Ano I, nº1 (web.unifil.br/docs/juridica/01/Revista%20Juridica_01-17.pdf). O Professor Tércio apresenta um modelo circular de sistema, o qual também é entendido como um conjunto de elementos e conjunto de elementos relacionados entre si, a partir de regras de relacionamento. “Além disso, o sistema circular constitui limite entre limites. Isto é, o sistema circular parte da idéia, também, de que o sistema, como tal, estabelece um limite e que esse limite tem, digamos assim, um aspecto interno e outro externo. O aspecto externo é um outro sistema. Isto é, todo o sistema está limitado por outros sistemas. Mas ao estar limitado por outros sistemas, ele está aberto para os outros sistemas; quer dizer, ele está constantemente em comunicação com outros sistemas. Assim, no sistema circular, apesar da idéia de o círculo ser fechado, há um momento em que o círculo se inicia, por assim dizer; isto é: um momento em que a informação entra. E há um momento em que o círculo se fecha, isto é, um momento em que a informação sai, voltando para o mundo circundante do sistema. Então, como vêem, há um canal de entrada e há um canal de saída”. Lá dentro, diz o autor, “acontecem uma porção de coisas.” Esta idéia de sistema é completamente diferente do chamado sistema dedutivo, ou do sistema da pirâmide. Ele tem algumas características gerais, independentemente do Direito. A primeira característica é a chamada importação de energia. O sistema tem, como ponto de partida, o meio ambiente, de onde ele importa energia. “Importar energia” significa que ele tira elementos do meio ambiente e os traz para dentro do sistema, para realizar um trabalho qualquer. Além disso, o sistema transforma energia, isto é, ele toma a energia e apresenta um novo produto, que lança para fora. Este tipo de sistema tem uma atividade cíclica, e pretende ser um sistema vivo. Esta concepção de sistema é tirada dos sistemas biológicos, dos sistemas orgânicos. Em terceiro lugar, o sistema tem, em geral, aquilo que, na Teoria Geral dos Sistemas, se chama de entropia negativa. A idéia é a seguinte: todo sistema vivo tende a se desintegrar, tende a morrer. Quando digo que todo sistema vivo tende a morrer, digo que a atividade do sistema é entrópica; ele tende a se desintegrar, a desaparecer, a morrer. Ora, o sistema evita a morte de diversas maneiras, como, por exemplo, importando energia, armazenando energia. E, quando armazeno energia, a minha atividade não é mais entrópica, não busca mais a morte: ela é entrópica negativa. Então, o sistema vivo aprende pela retro-informação, quer dizer, é um sistema que está em contato com o seu meio ambiente.

[6] Art. 227, §6º - Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

[7] CANARIS, Claus Wilhelm. “Direitos Fundamentais e Direito Privado”, Ed. Almedina, 2003.

[8] Ob. cit. p. 33.

[9] Ob. cit. p. 33.

[10] Ob. cit. p. 58.

[11] Aula ministrada em 05.09.2011, Curso de Mestrado em Direito Civil, cadeira de “Direito Civil Constitucional”.

[12] Ob. cit. p. 75.

[13] LARENZ, Karl. “Derecho Civil – Parte General”. Madrid, Editorial Revista de Derecho Privado, 1978, p. 96.

[14] Ob. cit. p. 98.

[15] FLÓREZ-VALDES, Joaquín Arce.“El Derecho Civil Constitucional”. Madrid,  Ed. Cuadernos Civitas, 1991, p. 21.

[16] GUARNERI, Attilio. “L’Ordine Pubblico e Il Sistema delle Fonti del Diritto Civile”. Cedam – Padova, p. 176/177.

[17] PERLINGIERI, Pietro. “O Direito Civil na Legalidade Constitucional.”, Ed. Bras. Org por Maria Cristina de Cicco, Rio de Janeiro, 2008. p. 125, 134/135.

[18] MORAES, Maria Celina Bodin de. “A Constitucionalização do direito civil”, Revista Brasileira de Direito Comparado, n. 17, 2º semestre, 1999, p. 86.

[19] TEPEDINO, Gustavo. “Temas de Direito Civil”. Rio de Janeiro, Renovar, 1999, p. 21.

[20] Lôbo, Paulo Luiz Netto. “Constitucionalização do direito civil”, in Revista Brasileira de Direito Comparado, n. 17, 2º semestre, 1999, p. 75.

[21] MARTINS-COSTA, Judith. “Os direitos fundamentais e a opção culturalista do novo Código CivilIn. SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Ed. Livraria do Advogado Editora. Porto Alegre, 2003, p. 63, 79 e 82. 

[22] BELIVáQUA, Clóvis. “A Constituição e o Código Civil”, RT 97, setembro de 1935, in LOTUFO, Renan. “O pioneirismo de Clóvis Beviláqua quanto ao Direito Civil Constitucional”. São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 768, p. 747/755, out/1999.

[23] LOTUFO, Renan. “O pioneirismo de Clóvis Beviláqua quanto ao Direito Civil Constitucional”. São Paulo, Revista dos Tribunais, v. 768, out/1999, p. 749.

 

[24] RAMOS, Carmem Lucia Silveira. “A Constitucionalização do Direito Privado e a sociedade sem fronteiras”, in FACHIN, Luis Edson (org.), “Repensando Fundamentos do Direito Civil Brasileiro Contemporâneo”, Rio de Janeiro, Ed. Renovar, 1998, p. 10/11.

[25] Ob. cit., p. 17.

[26] CUNHA, Fernando Whitaker da. “Direito Civil constitucional”, in Revista Brasileira de Direito Comparado, n. 17, 2º semestre, 1999, p. 46/47.

[27] LORENZETTI, Ricardo Luis. “Fundamentos do Direito Privado”. São Paulo, Ed. RT, p. 253.

[28] Ob. cit., p. 258.

[29] ROSAS, Roberto. “Constituição e direito civil”, in Revista Brasileira de Direito Comparado, n. 17, 2º semestre, 1999, p. 49 e 54/55.

[30] LAFER, Celso. “Internacionalização dos Direitos Humanos, A Constituição, racismo e relações internacionais”. 1ª. Ed. Manole. São Paulo. 2005, p. 13.

[31] FACHIN, Luiz Edson. “Constituição e Estado Social: Os Obstáculos à Concretização da Constituição”. 2008. Editora. Coimbra Editora, p. 245, 248 e 253.

[32] LOTUFO, Renan. “Da oportunidade da Codificação Civil e a Constituição”, in SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). “O novo Código Civil e a Constituição”, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2003, p.11-30.

[33] Na França, o Código Civil sempre teve maior importância que a Constituição, tanto que aquele pais jamais teve um Tribunal Constitucional, resolvendo seus impasses constitucionais em sede meramente administrativa.

[34] Ob. cit., p. 23.

[35] Dentre os doutrinadores pioneiros nesse estudo, destacam-se: Joaquim Arce, Florez-Valdes (Espanha), Ana Prata (Portugal), Marc Frangi e Pierre Kayser (França) e Pietro Perkingiere e Antonio Baldassare (Itália).

[36] Ob. cit., p. 25.

[37] Ob. cit., p. 27.

[38] Ob. cit., p. 27.

[39] Ob. cit., p. 29.

[40] Ob. cit., p. 29 e 30.


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