46 - Porte legal de armas por magistrados

 
JEFERSON MOREIRA DE CARVALHO – Juiz de Direito
 

 

 

O tema porte legal de armas por Magistrados vem à tona em razão de cenas recentes de televisão que chocaram toda a população quando mostrou um Juiz de Direito matando friamente com disparo de arma de fogo o vigia que o havia impedido de entrar em um supermercado sob a alegação de que já estava fechado.

                                        

Não é este o único caso que machucou as pessoas, podendo-se lembrar crime antigo em que Promotor de Justiça na cidade de Campinas, Estado de São Paulo matou a mulher e foi absolvido pelo Tribunal Popular. Depois do Promotor de Justiça que matou a mulher grávida em São Paulo. Condenado está foragido. Também, do Juiz de Direito que matou a mulher na estrada de acesso a Campos do Jordão, no Estado de São Paulo.

                                     

Para análise do tema exige-se que afastemos de nosso raciocínio estes graves crimes, a fim de que a apreciação seja isenta de paixões. Devemos sim lembrar que Magistrados são pessoas como todas as outras, com virtudes, defeitos, coragem e medo.

                                     

A questão precisa ser vista sob a ótica da necessidade, da legalidade e do sistema normativo brasileiro.

                                     

No exercício da atividade jurisdicional todos os Magistrados, todos os dias, agradam e desagradam pessoas. Manda-se prender, soltar, despejar, pagar; enfim, o Juiz manda que se tome conduta, muitas vezes, contrária aos interesses de quem deve obedecer.

                                     

Em nome do Estado a pessoa física do Juiz determina condutas que devem ser cumpridas sob a pena da lei. Muitos entendem e aceitam a determinação como técnica e como o Poder do Estado em manter o equilíbrio social; entretanto muitas pessoas não entendem a determinação e enxergam o Juiz como seu inimigo pessoal.

                                     

Desta conduta do Juiz pode gerar, como efetivamente gera, em muitas situações ameaças que ele sofre, dirigida a ele e sua família. As ameaças são variadas, como por telefone, carta e até por mensageiro.

                                     

Na função estatal de aplicar a lei o Juiz não pode enfraquecer na sua conduta em razão de ameaças recebidas. Deve decidir da mesma maneira sempre; ou seja, com imparcialidade e em respeito aos princípios constitucionais e normas legais em geral.

                                     

Ameaçado ou não o Juiz deve decidir conforme os ditames legais.

                                     

É, portanto, correto afirmar que ao exercer a função jurisdicional o Juiz expõe sua saúde e sua vida, bem como de sua família, em razão de entendimentos errôneos de sua conduta.Então, se sua função estatal lhe coloca em situação de perigo, é justo que o Estado lhe disponha alguma forma de defesa ou segurança, lembrando que os Magistrados não possuem segurança pessoal como muitas pessoas pensam, ao contrário de alguns políticos que estão sempre acompanhados de forte esquema de segurança bancado pelo Estado.

                                     

Deste modo, se faz necessário que todo Magistrado tenha por previsão legal a permissão do porte de arma de fogo para defesa pessoal e de sua família. A necessidade da permissão é evidente em razão da conduta exercida em nome do Estado, posto que mesmo com o fim de manter o equilíbrio social o desagrado está presente.

                                     

Mostrado a necessidade cabe verificar a legalidade.

                                     

Determina o art. 93 da Constituição Federal que lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura.

 

Com a redação da norma constitucional foi recepcionada a Lei Complementar 35 de 14 de março de 1979 que dispõe sobre a Lei Orgânica da Magistratura Nacional.

                                     

No art. 32 há previsão das prerrogativas do Magistrado, incluindo entre elas portar arma de defesa pessoal(V). Deve-se deixar claro que o vocábulo prerrogativa deve ser entendido em seu termo técnico e não com o significado chulo de privilégio imotivado.

 

                                    

Cabe ver o conceito dado por De Plácido e Silva em que prerrogativa, juridicamente, entende-se o direito exclusivo, que se defere ou se atribui a certas funções ou dignidades (in Vocabulário Jurídico, Vol. III, Forense, 1978, RJ). Então, é fácil concluir que considerando que o Magistrado exerce uma função estatal em que não raras vezes sofre diversas ameaças e não recebe do Estado nenhum tipo de proteção é prerrogativa sua, atribuída para a função, o porte de arma de defesa pessoal.

                                     

Recepcionada pela Constituição a mencionada lei complementar organiza a Magistratura Nacional e nesta organização prevê deveres, proibições, direitos e prerrogativas para os Magistrados.

                                     

Tem-se agora a Lei Ordinária 10826, de 22 de dezembro de 2003 que dispõe sobre o registro, posse comercialização de armas de fogo e munição, que no seu art. 6° expressa que é proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria.

                                     

A simples leitura do texto já mostra a possibilidade do porte de arma de fogo conforme previsão em legislação própria; deste modo os Magistrados continuam com o porte legal porque a legislação que faz a previsão é própria.

                                     

Certamente alguns vão afirmar que o texto não foi lido na integra e que a legislação própria se refere somente para os casos expressos nos incisos do artigo; no entanto a interpretação que temos é que a redação excepciona os casos de legislação própria e ainda para os casos indicados nos incisos.

                                     

Mas, mesmo que se abandone esta interpretação diante do sistema normativo constitucional está assegurado o direito do porte de arma de defesa pessoal aos Magistrados.

                                     

Sabemos que lei complementar é aquela que tem origem na Constituição Federal; isto é, toda lei complementar tem como fundamento de validade um artigo constitucional que ordene ao legislador ordinário a elaboração. Assim, tem a lei complementar matéria reservada e por ordem do art. 69 só será aprovada por maioria absoluta; então com quorum qualificado.

                                     

Estamos assim diante de uma lei complementar que organiza a Magistratura Nacional por ordem da Constituição Federal e uma lei ordinária que proíbe o porte de arma no território nacional.

                                     

O sistema normativo criado pelo art. 59 da Constituição Federal dispõe as espécies normativas primarias com a impressão imediata de que há hierarquia entre elas; todavia somente as emendas a Constituição se postam em plano superior as demais espécies.

                                     

O que diferencia uma espécie da outras são as particularidades que apresentam: matéria; procedimento; origem etc.

                                     

A diferença entre lei complementar e lei ordinária está em que a lei complementar tem matéria reservada, o que significa que lei ordinária não pode tratar de temas destinados à lei complementar, e, o quorum qualificado, com maioria absoluta, de aprovação para a lei complementar e maioria simples para a lei ordinária.

                                     

Deste modo à mencionada Lei Ordinária 10826 não pode tratar de matéria sobre a Magistratura Nacional. É evidente que a matéria sobre armas não está reservada para Lei Complementar, mas o porte de arma de defesa pessoal por Magistrados é matéria para a Lei Complementar porque incluso entre as prerrogativas dos Magistrados.

                                     

Em outra oportunidade já escrevemos que se há a determinação constitucional reservando determinada matéria para a Lei Complementar, não pode o legislador ordinário tratar da matéria por outra espécie normativa, concluindo que a lei ordinária não pode invadir o campo de ação destinado a Lei Complementar. Havendo a invasão, ocorre a nulidade restrita ao campo de invasão.(in Leis Complementares, Themis Livraria e Editora, 2000, SP, p.45).

                                     

Deste modo, a Lei Ordinária conhecida como lei do desarmamento não revoga a Lei Complementar conhecida por estatuto da Magistratura, porque a lei ordinária não pode tratar da matéria organização da Magistratura Nacional.

 

CONCLUSÃO:

 

                                  

Abstraindo do pensamento quaisquer atos praticados por Magistrados portando arma de defesa pessoal, a conclusão lógica a que se chega é que diante de atuação estatal de decidir condutas das vidas das pessoas o Magistrado desagrada muita gente, situação que o coloca em vulnerabilidade pelas ameaças que recebe. Observando a legalidade temos que a Lei Complementar 35/79 – Lei Orgânica da Magistratura Nacional-foi recepcionada pela Constituição em razão da redação do art. 93, e, por fim, lei ordinária não pode invadir o campo de ação de lei complementar; por isto a Lei Ordinária 10826 não revogou a Lei Complementar 35; assim em pleno vigor a prerrogativa de todo Magistrado portar arma de defesa pessoal independente de qualquer autorização.

 


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