24 - Da incompetência absoluta do Juizado Especial Cível para julgar feitos referentes à cobrança de assinatura mensal em telefonia fixa

ANA RAQUEL C. DOS SANTOS LINARD – Juíza de Direito
 

A motivação inicial para escrever acerca da questão aqui tratada derivou-se, como não poderia deixar de ser, da necessidade de decidir acerca da matéria debatida, sem perder de vista que tal decisão deveria levar em conta, preliminarmente ao exame do mérito, uma verificação mais apurada acerca da competência jurisdicional para o exame da questão, de forma a evitar a prolatação de decisões que venham a ser consideradas nulas, por incompetência absoluta, bem como promovendo, destarte, o resguardo da credibilidade do Poder Judiciário perante a sociedade a que serve.

 

Não me deterei, portanto, à análise do mérito da questão, a qual, até a presente data, não recebeu tratamento uniforme por parte da jurisprudência, da qual se constatam várias decisões contraditórias.

 

Creio que o entendimento existente pela competência da Justiça Estadual e, via de conseqüência, do Juizado Especial Cível para deslinde da questão referente à legalidade da cobrança da assinatura mensal em telefonia fixa deve decorrer dos ditames estipulados pela Lei Geral das Telecomunicações (Lei n° 9.472/97) que trata da concessão dos serviços de telefonia, prescrevendo que o regime regente da exploração deste tipo de prestação de serviços é o privado, devendo basear-se nos princípios constitucionais da atividade econômica, (art. 126) bem como, na circunstância de que a relação jurídica que enseja a cobrança questionada é estabelecida entre o usuário e a empresa concessionária, ostentando inequívoca natureza consumeirista, o que, certamente, apontaria para a competência jurisdicional da Justiça Estadual.

 

No entanto, idêntica relevância, para os fins de fixação de competência jurisdicional, deveria ser concedida à circunstância legalmente estabelecida de que a estipulação do valor da tarifa cuja legalidade é questionada, bem como a celebração e o gerenciamento dos contratos de concessão de serviços de telecomunicações compete à AGÊNCIA NACIONAL DE TELECOMUNICAÇÕES – ANATEL, segundo o teor do artigo 19, incisos VI e VII do referido diploma legal:

 

Art. 19. À Agência compete adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade, e especialmente:

VI - celebrar e gerenciar contratos de concessão e fiscalizar a prestação do serviço no regime público, aplicando sanções e realizando intervenções;

VII - controlar, acompanhar e proceder à revisão de tarifas de serviços prestados no regime público, podendo fixá-las nas condições previstas nesta Lei, bem como homologar reajustes;

 

O artigo 103 seguinte, por sua vez, estabelece que compete ainda à ANATEL - AGÊNCIA NACIONAL DE TELECOMUNICAÇÕES, estabelecer a estrutura tarifária para cada modalidade de serviço, ao passo que o § 4º, do art. 108, da aludida legislação ressalva que a 'oneração causada por novas regras sobre os serviços, pela álea econômica extraordinária, bem como pelo aumento dos encargos legais ou tributos, salvo o imposto sobre a renda, implicará a revisão do contrato.

Ademais, segundo esclarece o advogado Nehemias Domingos de Melo, em artigo de sua autoria acerca da matéria em debate, “a chamada ‘tarifa mensal’ não tem previsão na lei que regula a matéria, estando prevista no "Contrato de Concessão do Serviço Telefônico Fixo Comutado Local", firmado pela ANATEL e, no caso de São Paulo, com a Telefônica, pelo qual a concessionária oferece aos consumidores o chamado "Plano Básico do Serviço Local". Referido contrato, em seu anexo 03, cláusula 2.1, especifica que a prestadora de serviço poderá cobrar uma tarifa a título de habilitação para acesso ao "Serviço Telefônico Fixo Comutado – STFC", na cláusula 2.2, prevê uma tarifa de assinatura para manutenção do direito de uso do mesmo terminal telefônico e na cláusula 3, disciplina a tarifação do efetivo uso do terminal telefônico (o modelo do contrato está disponível no site da ANATEL).  Pesquisando a origem e a legalidade da ‘assinatura mensal’, encontramos ainda a resolução n° 85/98 da ANATEL, na qual se encontra definido o que seja a assinatura mensal, nos seguintes termos: "Tarifa ou preço de Assinatura: valor de trato sucessivo pago pelo Assinante à Prestadora, durante toda a prestação do serviço, nos termos do contrato de prestação do serviço, dando-lhe direito à fruição contínua do serviço" (art. 3°, XXI).Assim, a tarifa ou preço de assinatura, encontra previsão de sua existência, exclusivamente no contrato firmado entre a ANATEL e as empresas concessionárias dos serviços de telefonia, porquanto a Resolução retro mencionada, apenas se presta a definir a nomenclatura utilizada no sistema de telefonia.

(grifo nosso) (Da ilegalidade da cobrança da "assinatura mensal" dos telefones  - Nehemias Domingos de Melo - advogado em São Paulo, professor de Direito Civil na Universidade Paulista (UNIP), pós-graduado em Direito Civil pela UniFMU/SP).

        

Destarte, o interesse da Agência em questão, no resultado final de demandas da espécie, me parece evidente, a tornar imperativa sua participação no feito, na qualidade de litisconsorte passivo necessário, circunstância que, fatalmente, atrai a competência jurisdicional da Justiça Federal para o processamento da presente demanda, uma vez que a mencionada Agência ostenta natureza jurídica de autarquia federal, segundo os ditames do artigo 8o. da Lei 9.472/97: Art. 8º. Fica criada a Agência Nacional de Telecomunicações, entidade integrante da Administração Pública Federal indireta, submetida a regime autárquico especial e vinculada ao Ministério das Comunicações, com a função de órgão regulador das telecomunicações, com sede no Distrito Federal, podendo estabelecer unidades regionais.

 

Oportuno ainda salientar que a Constituição Federal, em seu artigo 21, XI, estabelece ser da competência da União Federal a competência para a exploração, direta ou mediante autorização, concessão ou permissão dos serviços de telecomunicações, tendo a Lei nº 9.472, de 16 de julho de 1997, outorgado competência à Agência Nacional de Telecomunicações fixar e proceder à revisão do valor das tarifas de serviços prestados.

 

A jurisprudência pertinente à matéria tem reconhecido o entendimento aqui defendido, conforme se pode concluir a partir da leitura das decisões a seguir transcritas: "COBRANÇA DE TARIFA INTERURBANA PELA CONCESSIONÁRIA DE TELEFONIA. ANATEL. LEGITIMIDADE. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. 1. Proposta a ação em face da Agência Reguladora Federal, de natureza autárquica, é competente a Justiça Federal. Acaso a pretensão não seja acolhida em face da mesma, a matéria é meritória. A legitimidade afere-se 'in abstrato' ('vera sint exposita'). 2. Hipótese em que as ligações telefônicas emanadas de distritos de um mesmo município eram cobradas a título de ligações locais. Com a implantação da denominada privatização dos serviços de telefonia, sem qualquer comunicação ou aviso prévio aos usuários, as conexões provindas ou endereçadas a algumas dessas localidades passaram a ser consideradas ligações interurbanas, com os conseqüentes reflexos na tarifação. 3. Deveras, a definição sobre se as ligações locais podem ser cobradas como interurbanas prescinde de notório interesse da Agência reguladora em prol dos consumidores. 4. As Agências reguladoras consistem em mecanismos que ajustam o funcionamento da atividade econômica do País como um todo, principalmente da inserção no plano privado de serviços que eram antes atribuídos ao ente estatal. Elas foram criadas, portanto, com a finalidade de ajustar, disciplinar e promover o funcionamento dos serviços públicos, objeto de concessão, permissão e autorização, assegurando um funcionamento em condições de excelência tanto para o fornecedor/produtor como principalmente para o consumidor/usuário. 5. A ANATEL deve atuar como litisconsorte passiva necessária, posto tratar-se de serviço de utilidade pública e a contraprestação do serviço se perfaz com o pagamento de tarifa, cuja modificação e fixação é sempre vinculada à autorização do poder concedente. Por isso, a necessidade de a ANATEL integrar a relação jurídica. 6. A CRT - Brasil Telecom, sendo concessionária de serviços públicos de telecomunicações, tem como órgão regulamentador e fiscalizador a Agência Nacional de Telecomunicações. Cabe a esta a delimitação das concessões e o estabelecimento das políticas tarifárias (art. 175 da CF). 7. Recurso especial desprovido." (STJ – Resp 572.906-RS - 1A. Turma – Relator LUIZ FUX – julg. 08/06/2004.)

 

Embasada em tais razões é que entendo ser a Justiça Estadual e mais precisamente o JUIZADO ESPECIAL CÍVEL juízo absolutamente incompetente para processar e julgar o presente feito em vista igualmente do disposto no art. 109, I e seu parágrafo 3o. da CF/88 c/c os arts. 3o. e 20 da Lei nr. 10.259/01, os quais possibilitam o aforamento de tais ações junto aos JUIZADOS ESPECIAIS FEDERAIS:

 

Art. 109 - Aos juízes federais compete processar e julgar:

I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidente de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;

Parágrafo 3o. – Serão processadas e julgadas na justiça estadual, no foro do domicílio  dos segurados ou beneficiários, as causas em que foram parte instituição de previdência social e segurado, sempre que a comarca não seja sede de vara do juízo federal e se verificada essa condição, a lei poderá permitir que outras causas sejam também processadas e julgadas pela justiça estadual.

 

Art. 3o. – Compete ao Juizado Especial Federal Cível processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de sessenta salários mínimos, bem como executar as suas sentenças.

 

Art. 20 – Onde não houver vara federal, a causa poderá ser proposta no Juizado Especial Federal mais próximo do foro definido no artigo 4o da Lei nr. 9.099, de 26 de setembro de 1995, vedada a aplicação desta Lei no juízo estadual.

 

A incompetência jurisdicional aqui defendida, em se tratando de incompetência material, é absoluta, não podendo ser modificada por pretensão das partes, (CPC 111) cabendo, por tratar-se de matéria de ordem pública, ser declarada de ofício pelo juiz, independentemente de provocação pelo interessado, conforme preconiza o art. 113 do CPC.

 

Muito embora se tenha notícia de inúmeras ações questionando a cobrança aludida no âmbito da Justiça Estadual, questiono-me cotidianamente se o processamento de tais demandas, desconsiderando-se a argumentação aqui enfocada, não trará, em um futuro próximo, descrédito ao Poder Judiciário decorrente de decisões contraditórias e ineficazes, uma vez nulas de pleno direito, caso reste finalmente reconhecido o direito da ANATEL de compor o pólo passivo das aludidas demandas, na qualidade de litisconsorte passivo necessário.

 

Defendo o declínio da competência para processo e julgamento de ações da espécie no âmbito da Justiça Estadual e sua conseqüente remessa ao Juízo Federal competente, em obediência ao comando legal do artigo 113 do CPC para que, caso seja aí suscitado o conflito negativo de competência, se obtenha, ao fim, decisão superior que norteie a questão e resguarde atuação jurisdicional promovida pelo Juízo Estadual.

 

Tal conduta por parte do magistrado demonstra, a meu ver, o zelo devido e esperado por parte de quem quer que ostente o dever, não só de entregar a prestação jurisdicional requerida pela sociedade, mas de o fazer de maneira válida e eficaz para que os seus efeitos perdurem, evitando-se, por conseguinte, desgaste desnecessário ao Poder Judiciário.

 

Ana Raquel Colares dos Santos Linard

JUÍZA DE DIREITO TITULAR DO JUIZADO ESPECIAL CÍVEL E CRIMINAL DA COMARCA DE JUAZEIRO DO NORTE (CE)

      Dezembro, 2004.
    


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