6 - Estatuto do Idoso – Lei nº 10.741 e Transporte Interestadual de Passageiros

ALEXANDRE PONTIERI - Advogado
 

Sumário

1. Introdução

Introdução

2. O artigo 40 da Lei nº 10.741/03 e sua regulamentação

3. Condições atuais dos idosos

Condições atuais dos idosos

4. Conclusão

Conclusão

 

 

1. Introdução

 

O Estatuto do Idoso foi publicado no Diário Oficial da União do dia 3 de outubro de 2003, com prazo de vacatio legis de 90 (noventa) dias, ressalvado o disposto no caput do artigo 36, que passou a vigorar a partir de 1ª de janeiro de 2004 (artigo 118 da lei 10.741/03).

 

O Estatuto trouxe em seu texto consideráveis mudanças no que tange a resguardar e regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos (artigo 1º). Algumas dessas mudanças dizem respeito à saúde, transportes coletivos, violência e abandono, entidades de atendimento ao idoso, lazer, cultura, esporte, trabalho, habitação etc.

 

Questão das mais importantes e que acredito será uma das mais tormentosas, é a que diz respeito ao sistema de transporte coletivo interestadual (artigo 40), recentemente regulamentada pelo Decreto nº 5.130, de 7 de julho de 2004, publicado no Diário Oficial da União, Seção I, de 8 de julho de 2004, página 5.

 

2. O artigo 40 da Lei nº 10.741/03 e sua regulamentação

 

O artigo 40 da lei nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso) dispõe:

 

No sistema de transporte coletivo interestadual observar-se-á, nos termos da legislação específica:

 

I – a reserva de 2 (duas) vagas gratuitas por veículo para idosos com renda igual ou inferior a 2 (dois) salários-mínimos;

 

II – desconto de 50% (cinqüenta por cento), no mínimo, no valor das passagens, para os idosos que excederem as vagas gratuitas, com renda igual ou inferior a 2 (dois) salários-mínimos.

 

Parágrafo único – caberá aos órgãos competentes definir os mecanismos e os critérios para o exercício dos direitos previstos nos incisos I e II.

 

O Decreto nº 5.130, de 7 de julho de 2004 estava sendo muito aguardado, quer pela comunidade jurídica, quer pelos idosos, que necessitavam ver regulamentado tão importante artigo de seu Estatuto.

 

Podemos dizer que o Decreto tem pontos positivos e outros negativos.

 

Visualizo como positivos os seguintes aspectos:

 

1 – A definição de Idoso, como sendo a pessoa, igual ou superior a sessenta anos (artigo 2º, I), já anteriormente definido no artigo 1º da lei nº 10.741/03.

 

2 – A definição do que vem a ser serviço de transporte interestadual de passageiros: o que transpõe o limite do Estado, do Distrito Federal ou de Território (artigo 2º, II).

 

3 – Que no ato da solicitação do "Bilhete de Viagem do Idoso" ou desconto do valor da passagem, o interessado deverá apresentar documento pessoal que faça prova de sua idade e da renda igual ou inferior a dois salários-mínimos (Artigo 6º).

 

A comprovação de renda será feita mediante a apresentação de um dos seguintes documentos:

 

I – Carteira de Trabalho e Previdência Social com anotações atualizadas;

 

II – contracheque de pagamento ou documento expedido pelo empregador;

 

III – carnê de contribuição para o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS;

 

IV – extrato de pagamento de benefício ou declaração fornecida pelo INSS ou outro regime de previdência social público ou privado; e

 

V – documento ou carteira emitida pelas Secretarias Estaduais ou Municipais de Assistência Social ou congêneres.

 

Essa medida é muito importante, pois beneficiará, em muito, aqueles idosos que vivem em condições mais simples e muitas vezes têm parentes residindo em outros Estados da Federação.

 

Já o grande ponto negativo é o seguinte:

 

O § 2º do artigo 2º do Decreto nº 5.130, de 7 de junho de 2004, recentemente alterado pelo Decreto nº 5.155, de 7 de julho de 2004, assim dispõe:

 

§ 2 – O beneficiário, para fazer uso da reserva prevista no caput deste artigo, deverá solicitar um único "Bilhete de Viagem do Idoso", nos pontos de venda próprios da transportadora, com antecedência de, pelo menos, três horas em relação ao horário de partida do ponto inicial da linha do serviço de transporte, podendo solicitar a emissão do bilhete de viagem de retorno, respeitados os procedimentos da venda de bilhete de passagem, no que couber.

 

A meu ver, este artigo afronta o artigo 230 da Constituição Federal que dispõe "artigo 230: A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida", além de afrontar o próprio Estatuto do Idoso.

 

Os idosos não foram, de maneira alguma, esquecidos pelo Constituinte Pátrio. A "velhice" ganhou especial atenção de nosso legislador, colocando, como dever da família, da sociedade e do Estado ampara-los, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.

 

O Estatuto do Idoso veio para assegurar, de forma explícita, o que a Lei Maior já lhes garantia.

 

Assim, ao regulamentar o artigo 40 da Lei nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso), o Decreto nº 5.130/04, alterado pelo Decreto nº 5.155/04, o Presidente da República excedeu em sua competência legislativa, pois, criou, inovou, uma condição ao exercício dos idosos que não estava prevista em seu Estatuto, criando a antecedência mínima de 3 (três) horas para solicitar o referido "Bilhete de Viagem do Idoso".

 

O Regulamento, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello é, "ato geral e (de regra) abstrato, de competência privativa do Chefe do Poder Executivo, expedido com a estrita finalidade de produzir as disposições operacionais uniformizadoras necessárias à execução da lei cuja aplicação demande atuação da Administração Pública".

 

E continua o mesmo Professor, "é que os dispositivos constitucionais caracterizadores do princípio da legalidade no Brasil impõem ao regulamento o caráter que se lhe assinalou, qual seja, o de ato estritamente subordinado, isto é, meramente subalterno e, ademais, dependente de lei. Logo, entre nós, só podem existir regulamentos conhecidos no Direito Alienígena como "Regulamentos Executivos". Daí que, em nosso sistema, de direito, a função do regulamento é muito modesta".

 

Condicionar o idoso a fazer uso da reserva do "Bilhete de Viagem do Idoso", com antecedência de, pelo menos, três horas em relação ao horário de partida do ponto inicial da linha do serviço de transporte, é o mesmo que coloca-lo em desvantagem, ferindo a absoluta prioridade disciplinada no artigo 3º da lei nº 10.741/03 – "é obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária".

 

As Empresas de Transportes Interestaduais alegam que tal medida servirá de parâmetro para que saibam, com antecedência de, pelo menos 3 (três) horas, se algum idoso irá ou não embarcar, para que possam comercializar as passagens em não havendo passageiros nestas condições.

 

Do ponto de vista das empresas a medida até parece salutar. Agora, imaginemos a seguinte situação hipotética: um idoso, morador da cidade de São Paulo, recebe, por volta das 12:00 horas, um telefonema de seu filho, morador em Cuiabá, Mato Groso, para que vá visitá-lo o mais rápido possível, pois encontra-se adoentado e precisa muito da companhia de seu pai. O pai, então sai desesperadamente em direção à rodoviária para adquirir a passagem com destino a Cuiabá. Chegando no guichê da empresa de ônibus é informado que o próximo carro sairá às 14:00 horas, só que, infelizmente, não poderá incluí-lo no benefício, pois o mesmo não cumpriu a antecedência de, pelo menos, três horas em relação ao horário de partida, mesmo que existam vagas, obrigando o idoso a comprar a passagem.

 

Como deve proceder o idoso nesta situação? Acredito que o idoso estará recebendo tratamento absolutamente prejudicial em relação aos demais adultos.

 

Mesmo que as empresas montassem toda uma estrutura, como salas de espera, por exemplo, não se estaria dando tratamento adequado aos idosos, pois, mesmo em Aeroportos, o check-in internacional é feito com 2 (duas) horas de antecedência, só que para os passageiros de forma geral, sem distinção de sexo, idade etc.

 

O artigo 739 do Novo Código Civil dispõe: "o transportador não pode recusar passageiros, salvo os casos previstos nos regulamentos, ou se as condições de higiene ou de saúde o interessado o justificarem".

 

Atualmente as empresas que descumprirem a lei estão sujeitas a multas que variam de R$ 764,36 a R$ 2.296,08, no caso da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), e de 3 (três) vezes o valor da passagem no caso da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários). As empresas ainda estão sujeitas às sanções administrativas. (Resolução nº 653, de 27 de julho de 2004 e Resolução nº 260-ANTAQ, de 27 de julho de 2004).

 

Só que essas multas dizem respeito ao não-cumprimento por parte das empresas, deixando como está a questão das 3 (três) horas de antecedência.

 

Apesar do Estatuto do Idoso ser bem claro, a Associação Brasileira das Empresas de Transporte Terrestre de Passageiros, conseguiu uma liminar na 14ª Vara da Justiça Federal em Brasília, alegando ser ilegal a medida do Governo e argumentando que não há previsão de fonte para custear o benefício, trazendo desequilíbrio econômico para as empresas do setor.

 

A estimativa do Ministério dos Transportes é que 11 (onze) milhões de pessoas tenham direito ao benefício.

 

As empresas alegam desequilíbrio econômico, mas o artigo 230, § 2º da Constituição Federal já garante aos maiores de sessenta e cinco anos a gratuidade dos transportes coletivos urbanos, além do Metrô, como é o caso de São Paulo, sem afetar o tão discutido lucro das empresas.

 

3. Condições atuais dos idosos

 

Em recente pesquisa realizada pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, em parceria com a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), e apoio da Fapesp, tivemos o seguinte quadro sobre o envelhecimento da cidade de São Paulo:

 

     

  • 9,3% da população de São Paulo tem 60 anos ou mais

     

     

  • a idade média é de 68 anos

     

     

  • 58,6% são mulheres

     

     

  • para cada 100 homens idosos, São Paulo tem 142 mulheres na terceira idade

     

     

  • hoje, 13% vivem sozinhos. Há cinco anos, eram apenas 6%

     

     

  • 70% não recebem ajuda de ninguém, ainda que apresentem dificuldade para fazer tarefas diárias

     

     

  • até os 15 anos de idade, 63% dos entrevistados viveram no campo por cinco anos ou mais

     

     

  • 21% são analfabetos

     

     

  • de cada 10 idosos, 8 não trabalham mais

     

     

  • 51,9% são aposentados

     

     

  • 2/3 dos idosos ganham entre 1 a 5 salários mínimos

     

     

  • 35% começaram a trabalhar antes dos 12 anos

     

     

  • 75,7% tiveram trabalho predominantemente físico

     

     

  • 40% possuem plano de saúde particular

     

     

  • 55% consideram sua saúde má ou regular

     

     

  • 86,7% necessitam tomar algum remédio

     

     

  • 71,7% compram medicamento com dinheiro próprio

     

     

  • 17% têm dificuldade para se vestir

     

     

  • 51% mal conseguem agachar-se

     

     

  • 17% mal podem caminhar uma quadra

     

 

E também em pesquisa da CEPAL – Comissão Econômica para América Latina e Caribe, ficou comprovado que ser idoso na América Latina pode ser considerado sinônimo de ser pobre. Segundo o estudo, "a velhice na América Latina se dá num contexto de muita pobreza, persistente desigualdade social e baixa cobertura da seguridade social", com necessidade crescente de complementar a renda.

E ainda segundo o estudo, do total de 14,5 milhões de idosos brasileiros, quase 10 (dez) milhões recebem benefícios da previdência. Outros 600 mil recebem um salário-mínimo por meio da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), que são rapidamente consumidos com a compra de seus caríssimos medicamentos.

 

4. Conclusão

 

Muito ainda poderia ser dito, mas a verdade é que ainda veremos muitas discussões e decisões dos Tribunais sobre a polêmica questão do transporte interestadual dos idosos.

 

Caso o Congresso Nacional entenda que o Poder Executivo exorbitou de seu poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa, poderá sustar tais atos normativos (artigo 49, V, da Constituição Federal) o que acho ser bem pouco provável.

 

Esperamos que as arestas destes Decretos sejam aparadas, possibilitando melhorias efetivas e cada vez maiores aos idosos, para que possam ter uma "velhice" digna e com respeito conforme preceitua nossa Carta Magna.

 

Infelizmente ainda estamos muito longe do padrão dos idosos de países desenvolvidos, como os americanos, ingleses, japoneses etc, que quando atingem a atualmente chamada "melhor idade", podem efetivamente desfrutar da vida, fazendo cruzeiros pelo Mundo ou desfrutando de belos safáris com seus companheiros. No Brasil esta realidade não existe, e a depender da mentalidade da maioria dos empresários não existirá nunca. Nossos idosos ainda são obrigados a se submeter a muitas humilhações e quando passeiam de barco é para atravessar a nossa Amazônia, salvo raras exceções.

 

Oxalá lutemos pela efetivação dos direitos dos idosos, para que possam gozar com plenitude esta etapa fundamental de suas vidas, trazendo conhecimento e sabedoria para as gerações vindouras.

 

Alexandre Pontieri é advogado em São Paulo; pós-graduado em Direito Tributário pelo CPPG – Centro de Pesquisas e Pós-Graduação da UniFMU, em São Paulo e pós-graduado em Direito Penal pela ESMP-SP – Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo.



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