672 – Prisão imediata decorrente de condenação pelo Tribunal do Júri e a Constituição Federal

Ronaldo Sérgio Moreira da Silva [1] – Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo

 

O Brasil passa por momento em que se sente a presença de ventos voltados para mudanças em nossa ordem jurídica constitucional!

 

Convém não se olvidar, contudo, de que a alteração do sistema jurídico constitucional, sobretudo quando afeta a sua principiologia, assim consideradas as garantias trazidas pelo constituinte originário, há de ser realizada pelo poder legitimado a tanto, qual seja o Poder Legislativo, mas sempre respeitada a supremacia da Constituição!

 

Vale destacar, a propósito, escólio do eminente Ministro Luís Roberto Barroso acerca da supremacia da Constituição, ao prelecionar:

 

A Constituição, portanto, é dotada de superioridade jurídica em relação a todas as normas do sistema e, como consequência, nenhum ato jurídico pode subsistir validamente se for com ela incompatível. [2]

 

Como é de todos sabido e consabido, a Constituição Federal brindou os cidadãos brasileiros com o princípio da presunção de inocência, verdadeira garantia intocável e impostergável a conceder maior legitimidade ao Estado Democrático de Direito implantado no Brasil, inscrita no artigo 5º, inciso LVII: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

 

Isto significa que ninguém será recolhido ao universo ergastular (vale dizer, universo prisional) antes que se esgotem todas as possibilidades recursais nas variegadas instâncias da Justiça brasileira, para o fim de cumprir a pena privativa de liberdade infligida na sentença penal condenatória. Há, portanto, vedação clara e inequívoca da denominada prisão-pena antes da ocorrência do trânsito em julgado.

 

Não se há de confundir tal situação com a possibilidade de prisão cautelar – no caso, a prisão preventiva –, que sabidamente tem natureza provisória e pode ser decretada em toda e qualquer fase do processo penal, desde que presentes, v.g., os requisitos previstos no artigo 312 do Código de Processo Penal, o qual se acha em perfeita consonância com a norma insculpida no artigo 5º, inciso LXI, da Constituição Federal.

 

Pois bem, feitas tais colocações, vale trazer a lume o preceito do artigo 492, inciso I, alínea “e”, do Código de Processo Penal, cujo comando normativo foi introduzido pelo denominado Pacote Anticrime, a Lei nº 13.964/2019, segundo o qual o juiz presidente do tribunal do júri, no caso de condenação, mandará prender imediatamente o réu que tenha sido condenado a pena igual ou superior a 15 anos.

 

Esse dispositivo de lei ordinária determina o que claramente se chama de prisão-pena, haja vista que, uma vez proferida a condenação, determina peremptoriamente a imediata prisão do réu, sem prejuízo do recurso que este venha a interpor para a instância superior, o qual, de regra, não terá efeito suspensivo.

 

Ao que parece, segundo alguns juristas, essa norma infraconstitucional estaria legitimada pela soberania dos veredictos do tribunal do júri (art. 5º, XXXVIII, “c”, CF), cujos julgamentos são realizados pelo conselho de sentença, que é composto por juízes leigos, sorteados entre pessoas do povo.

 

Mas há uma pergunta que não quer calar: a garantia da soberania dos veredictos do júri popular para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida pode sobrepor-se à garantia da presunção de inocência?

 

Essa soberania diz com a legitimidade do julgamento realizado por pessoas do povo, diz respeito ao juiz natural. Não tem a ver com a prisão do réu – vale dizer, se e quando deve ser preso -, visto que se trata de atribuição exclusiva do juiz presidente do tribunal do júri! Cabe explicitar que essa garantia constitucional consiste basicamente em que o veredicto proferido pelo tribunal não pode ser modificado, para condenar ou absolver o réu, em grau de recurso pela instância superior, consoante bem assevera a doutrina! [3]

 

Entretanto, não se afigura cabível nem admissível a ideia de que alguém venha a ser privado de sua liberdade imediatamente após a proclamação de sua condenação, a título de prisão-pena, porquanto esta se apresenta visivelmente vulneradora e afrontosa à garantia constitucional da presunção de inocência, segundo a qual, relembre-se, a prisão-pena só terá vez depois do trânsito em julgado de toda e qualquer sentença penal condenatória!

 

Cumpre abrir aqui um parêntese para recordar valiosa lição de Hans Kelsen, consistente no ordenamento jurídico representado pela pirâmide, em cujo ápice se situa a Constituição, devendo, pois, todas as normas editadas no país ser compatíveis com os princípios, com as diretrizes pela mesma estabelecidas. E não o contrário: descabida e inconcebível a ideia de interpretar a Constituição conforme a norma infraconstitucional!   

 

E mais, importante considerar que o constituinte, ao inscrever a garantia da presunção de inocência, não excepcionou as condenações proferidas pelo tribunal do júri popular.  Diferente seria se a Constituição asseverasse que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, ressalvada a hipótese de condenação proclamada pelo júri popular”!

 

Oportuno lembrar, nesse passo, que a hermenêutica jurídica abriga princípio segundo o qual “não cabe ao intérprete distinguir onde a lei (no sentido lato do vocábulo) não faz distinção”!

 

Pensar de maneira diversa significa desprezar e violar princípios norteadores do Direito enquanto ciência; significa vislumbrar e tratar o Direito como mera técnica aplicável ao sabor dos ventos, sem qualquer preocupação ou respeito à ordem jurídica, embora considerada como um sistema, de modo a gerar sério comprometimento à segurança jurídica que deve presidir as relações numa sociedade que se pretende livre e reverenciadora da dignidade da pessoa humana!

 

E nem mesmo a Corte Constitucional do país se mostra revestida de legitimidade com vistas a mudar esse status quo, ainda que a pretexto de realizar o que se conhece como mutação constitucional. Isto porque esse instituto albergado pelo Direito Constitucional possibilita a mudança de interpretação de dispositivo da Constituição Federal, porém dentro dos limites do texto desse mesmo dispositivo, de sorte que o tribunal constitucional não pode alterar a redação do dispositivo em questão, sob pena de afrontar o princípio constitucional da separação dos poderes, que impõe a independência e a harmonia entre os Poderes da República (art. 2º, CF)!

 

Apenas para ilustrar, necessário trazer a lume, a esse respeito, lição do preclaro jurista Luís Roberto Barroso sobre a mutação constitucional, ao asseverar que se trata de: “... mecanismo que permite a transformação do sentido e do alcance das normas da Constituição, sem que se opere, no entanto, qualquer modificação do seu texto”. [4] (grifei)

 

Em suma, fica fácil concluir que o preceito do artigo 492, inciso I, alínea “e”, do Código de Processo Penal, introduzido pela Lei nº 13.964/2019 (Pacote Anticrime), quando determina prisão imediata do réu condenado pelo tribunal do júri a penal igual ou superior a 15 anos, revela-se de todo incompatível com a Constituição Federal, por violar clara e inequivocamente a garantia da presunção de inocência, cuja norma que a abriga, relembre-se, não contém qualquer ressalva!

 

Impende ressaltar que, no âmbito da jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça, antes do avento da alteração legislativa em questão, já vinha manifestando entendimento no sentido de ser ilegal a prisão imediata em defluência, única e exclusivamente, do veredicto condenatório proclamado pelo Tribunal do Júri:

 

(...) 5. Em suma, a execução provisória da pena, in casu, foi determinada pelo Juiz Presidente do Tribunal do Júri em face do veredicto popular, antes mesmo da interposição do recurso de apelação cabível para a instância ad quem, o que configura manifesta ilegalidade, passível de correção de ofício por esta Corte Superior de Justiça (RHC 84.406/RJ, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 12/12/2017, DJe 01/02/2018).

 

6. De qualquer modo, tanto a doutrina quanto a jurisprudência, salvo pontuais divergências, sempre entenderem que a decisão do Tribunal do  Júri não  é imediatamente exequível. A soberania dos veredictos não é absoluta e convive em harmonia com o sistema recursal desenhado pela Lei Adjetiva Penal. O fato de a Corte revisora, no julgamento de apelação contra decisão do Tribunal do Júri, não estar legitimado a efetuar o juízo rescisório, não provoca a execução imediata da sentença condenatória, pois permanece incólume a sua competência para efetuar o juízo rescindente e determinar, se for o caso, um novo julgamento, com reexame de fatos e provas. (...). (RHC 92108/RS – Recurso Ordinário em Habeas Corpus 2017/0305450-0 – Relator Ministro José Reynaldo da Fonseca - julgamento em 06/03/2018).

 

Já sob a égide do artigo 492, parágrafo 4º, do Código de Processo Penal, cuja redação foi conferida pelo Pacote Anticrime, a mesma Colenda Corte Superior de Justiça manteve o entendimento acerca da inadmissibilidade da prisão imediata decorrente do veredicto condenatório proclamado pelo Tribunal do Júri:

 

(...) o STJ não admite a execução automática da sentença condenatória do Tribunal do Júri e a prisão preventiva, nessa circunstância, somente poderá ser decretada se houver justificativa em fatos concretos suficientes e contemporâneos. Precedentes. (AgRg no HC n. 565.921/PE, Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, DJe 28/5/2020).

 

Não se desconhece que a possibilidade de execução provisória nas condenações proferidas pelo Tribunal do Júri, com pena igual ou superior a 15 anos de reclusão, está sendo apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, no Recurso Extraordinário n. 1.235.340 - Tema n. 1.068, contudo, o julgamento ainda não foi concluído. 3. Dessa forma, mantém-se o entendimento, nesta Corte Superior, pela impossibilidade de execução provisória da pena, ainda que em condenação proferida pelo Tribunal do Júri com reprimenda igual ou superior a 15 anos de reclusão. Precedentes. (HC n. 649.103/ES, Ministro Antonio Saldanha Palheiro, Sexta Turma, DJe 12/8/2021). (Rcl 42646 – Relator(a) Ministro Sebastião Reis Júnior - Data da Publicação 10/12/2021).

 

De outra banda, não bastasse o quanto até aqui assentado, há que se considerar outro aspecto dessa mesma normal infraconstitucional. Indubitável a sua natureza penal, máxime por referir-se a prisão-pena decorrente de condenação imposta em sentença penal condenatória. Logo, se foi instituída no ano de 2019, e mais com vigência a partir de 2020, não pode ser aplicada a agentes de crimes cometidos anteriormente, por revelar-se nitidamente prejudicial, mercê da garantia constitucional consubstanciadora de norma obstativa prevista no artigo 5º, inciso XL, da Constituição Federal, in verbis: “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.”

 

Em suma, a prisão imediatamente após a sentença condenatória somente terá vez sob o signo da cautelaridade (prisão preventiva) e, desse modo, se presentes os requisitos previstos no Código de Processo Penal (art. 312). Enquanto isso, a prisão-pena ocorrerá somente quando a sentença condenatória estiver selada pelo trânsito em julgado. À guisa de conclusão, afigura-se inequívoco o choque frontal do preceito do artigo 492, parágrafo 4º, do Código de Processo antedito com o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, LVII, CF), a gerar o repugnável fenômeno da inconstitucionalidade.

 

Por fim, respeitar e fazer respeitar os direitos humanos – e, portanto, a dignidade da pessoa humana, eleita como importante valor fundante do Estado de Direito implantado no Brasil com a Constituição Federal de 1988 (art. 1º, III) – é atribuição fundamental e impostergável da Suprema Corte Brasileira!

 

26 de dezembro de 2021.


[1] Professor de Direito Processual Penal e Execução Penal na Faculdade de Direito Santo André.

[2] Curso de Direito Constitucional Contemporâneo – Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo, Editora Saraiva, 5ª edição, p. 109.

[3] Edilson Mougenot Bonfim, Curso de Processo Penal, Editora Saraiva, 12ª edição, 2017, p. 717.

[4] Curso de Direito Constitucional Contemporâneo – Os Conceitos Fundamentais e a Construção do Novo Modelo, Editora Saraiva, 5ª edição, p.158.


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